Gente ainda tem jeito
...e o passarinho se dobrava em canto.
Eu procurava pelos ouvidos, os olhos não eram bastante. Seguia a melodia. Ele estava logo ali saudando a primavera – luz da manhã. O telhado era cor de cerâmica e ele, amarelo. Canário. Camuflava-se com as telhas e o dourado dos raios. Só o canto o denunciava.
Se fosse décadas atrás estaria em uma gaiola por cantar tanto. Se fosse sem encanto teria levado pedrada com tiradeira de moleque.
Meus irmãos eram exímios em estilingues. Apedrejavam as pobrezinhas aves. Se ricas em plumagem ou em gogó os alçapões eram armados.
E eu não era tão isento assim para defender as inocentes criaturas e nem tão maldoso para dar pedradas. Eu também era cúmplice. Eu gostava de ficar de tocaia espreitando pardais e tico-ticos que vinham comer angu nas gaiolas dos que estavam presos.
Quando os passarinhos voavam cômodo adentro, eu corria e fechava as bandeiras da porta – as janelas já estavam com suas guilhotinas abaixadas. Não os matavam. Eu gostava era de pegá-los e apreciar suas penas, seus tamanhos diminutos... Seus coraçõezinhos pulsando de medo – eu era um sádico, aproveito para confessar. Depois meu prazer era soltá-los e vê-los voar. Compensação e passatempo de criança de velhos tempos.
Presente!
Estão aí em montões: eles cantam, eles comem, eles voam... Livremente e quase sem medo. Quase! Porque sabem que os humanos são imprevisíveis e que nem toda gente evoluiu tanto.
A tese de haver bandos canoros e outros bichos é que estão desmatando o meio ambiente. E eles, os bichos, estão invadindo a urbe. Desconfio disto e arrisco palpite.
Há canários, há tico-ticos, há pardais e até tucanos – que não eram vistos – e outros bichos é em virtude de nós termos evoluídos. Muito há de se fazer ainda, mas que houve uma mudança cultural não podemos negar.
Desmatamentos e queimadas ocorrem, mas o número de fumantes diminuiu. As crianças da cidade não saem mais para o subúrbio com espingardas de chumbinho ou armam arapucas. Os pais estão ensinando os filhos a admirarem os animais vivos e não empalhados ou presos em gaiolas. Há vasilhas de água e rações pelas esquinas para cães e gatos vadios.
Esta conscientização ocorreu depois de tantas campanhas pró-vidas, surgimento de associações protetoras – antes havia carrocinhas exterminadoras de gatos vagabundos e cachorros fujões – há ONGs cuidando de tudo e de todos.
Mazelas ainda ocorrem, porém mudanças acontecem. Por pior que seja prefiro o pós-modernismo ao sadomasoquismo modernista.
O humano ainda tem jeito - sei que os pessimistas odiarão! Mas prefiro acreditar que somos inteligentes e podemos intervir e melhorarmos muito mais.
Uma viva às Vidas!
...e o canário continuou cantando.
Leonardo Lisbôa.
Feliz primavera!
Barbacena, 27/09/2013.