Cada Macaco No Seu Galho
Eu morava perto do Pico do Jaraguá num bairro que tinha quase tudo, desde o bar do Jaburú que servia o mocotó da Marisa todo sábado até um supermercado de grande porte. O melhor do meu bairro, na minha opinião, era a EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil) inaugurada um pouco depois que mudamos para lá e a vídeo locadora que tranquilamente dava de dez a zero em qualquer uma do Alto da Lapa onde moravam os meus pais.
Os meus três filhos estudaram naquela escola espaçosa e toda ensolarada onde brincaram livremente entre as árvores e plantas sem contar os inúmeros brinquedos que nós mães da APM adquirimos logo no nosso primeiro mandato.
A Prefeita Luiza Erundina mandava uma quantia todo mês à todas as EMEIs de São Paulo mas, com uma condição: o valor teria que ser gasto dentro daquele mês se não, o cheque era devolvido. Poderíamos gastar a quantia que fosse mas tínhamos que prestar cada conta. Éramos obrigadas a fazer um relatório sobre o gasto, o por quê daquele gasto, anexar nota fiscal, etc. Claro que dava um trabalhão no começo mas acabamos tirando tudo de letra com a prática.
Prefeita Luiza Erundina (1987 - 1993)
Mesmo sendo uma escola nova, faltava algumas coisas para fazer com que a nossa EMEI ficasse ainda mais aconchegante e perfeita para nossas crianças.
As professoras perceberam que muitas crianças do período vespertino faziam xixi nas calças dos seus uniformes daí passaram a pedir que os pais enviassem alguma roupa extra na mochila se caso ocorresse algum acidente. Conversa vem, conversa vai, as mães e professoras descobriram o por quê: o escuro! Em dia nublado, chuvoso e no inverno ficava muito escuro e maioria das crianças tinha medo de percorrer o caminho até o banheiro que ficava no prédio principal que era separado das salas de aula. Era uma distância curta mas para uma criança entre 4-6 anos num dia escuro era como trilhar numa floresta onde provavelmente morava uma bruxa ou um baita lobo mal.
Com o cheque mensal da Prefeita e mais uma festa, juntamos dinheiro suficiente para fazer uma cobertura melhor com iluminação adequada. O resultado? Ninguém mais fez xixi nas calças do uniforme!
Minha caçula Beatrice
Em 1993, já no meu terceiro mandato, o ano que a minha caçula Beatrice estudou na EMEI, as merendeiras pediram à APM um piso novo na cozinha. Com as mais variadas temperaturas, o piso trincou, quebrou e soltou provocando riscos às profissionais que preparavam as refeições e lanches dos alunos. Nossa meta: um novo piso e uma batedeira industrial. Tarefa complicada por que tínhamos o jardim para refazer para a chegada da primavera. Um jardineiro havia sido chamado e logo providenciou o orçamento: R$1,500.00. A escola tinha uma área enorme e o preço era justo mas queríamos fazer o piso novo, e a batedeira industrial seria uma mão na roda na hora de fazer os quitutes. A mãe do Henrique, a minha amiga Tânia, cochichou timidamente, "Que tal a gente juntar os pais e nós mesmos damos um jeito no jardim e playground?" É, a ideia parecia boa. Além do mais, faríamos uma bela economia. Levantei a mão e sugeri a ideia da Tãnia.
"Temos 200 alunos daí imagino que devemos ter um bom número de pais e mães. Se 50% comparecer, podemos carpir, replantar, limpar, pintar os brinquedos e fazer tudo que tiver que ser feito até às 16 hrs. Vamos economizar R$1,500.00 que podemos investir no piso da cozinha, além de comprar a batedeira industrial! Então?"
Lilian, a diretora, achou a sugestão ótima. A Laís que era a psicóloga também. O pessoal da cozinha topou na hora e as mães que participavam da APM imediatamente concordaram com o restante das mães.
Resolvido então. As crianças levariam o comunicado convocando os pais para participarem do 'Mutirão'.
Na verdade, foi feito um convite citando o horário além de informar que um almoço especial seria feito pelas cozinheiras assim as mães poderiam vir tranquilamente com as crianças sem se preocuparem em fazer almoço em casa no dia do nosso mutirão.
Escolhemos um sábado para o Dia D e organizamos tudo nos mínimos detalhes. Ferramentas, adubo, novas plantas que adquirimos no CEASA, tinta que alunos e vizinhos trouxeram, azulejos, etc. basicamente tudo que poderia ser usado naquele evento que começaria às 8:30.
O sábado do mutirão chegou e lá fui eu com meus filhos. No caminho encontrei a Tânia e o Henrique carregando uma enxada de brinquedo. Conversamos animadamente já imaginando o jardim e playground no fim do dia.
Chegamos na escola e encontramos a Lilian, a diretora, duas merendeiras, três mães e um pai. Já eram 8:15 mas mesmo assim botei fé e ainda rezei um Pai Nosso só pra garantir que o número de pais cresceria. A Tânia me perguntou, "Acha que tá muito cedo?" Respondi que não e lá fomos rumo ao jardim.
A Lilian nos comunicou que a Laís não viria por que estaria fazendo exames. Ela que trabalhava numa escola e adorava crianças não conseguia engravidar. Aí o motivo dos exames. Antes de iniciar o trabalho, fizemos uma oração em grupo.
Nunca tinha mexido em jardim, apenas em vasos pequenos na casa da minha Mãe. Mas mesmo assim, peguei uma enxada e o único pai que compareceu me mostrou como carpir. Lá fui eu tirando o matinho sem piedade. Pensava em acabar logo com o serviço para começar a plantar algumas mudas de hortênsias e também uma árvore frutífera afinal, dizem: 'Todo mundo deve ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro'. Portanto ao chegar o fim daquele dia só me faltaria escrever um livro! O meu entusiasmo cresceu mas ao dar uma boa olhada pelo jardim, não vi o número de pais crescer. Só vi muito mato e as minhas mãos que só conheciam leves serviços domésticos e o teclado do PC já sentiam o castigo da labuta árdua de um jardineiro.
Vi sim alguns rostos conhecidos de mães e crianças que passavam ao lado da escola. Todos vestidos para um passeio ao invés de participar do nosso mutirão. As mães passavam com seus filhos e maridos e davam aquela olhada para mim, Tânia e os demais carpindo e soltavam risos que davam pra ouvir mesmo longe. Aquilo me deixou putíssima! Mesmo assim, ergui a minha cabeça, e continuei a carpir. Todos pareciam não dar bola e faziam o mesmo que eu.
Trabalhamos muito mesmo e quando deu meio-dia, as merendeiras nos serviram um almoço caprichado dos deuses! Enquanto comíamos, conversávamos e trocamos ideias sobre o jardim. A Lilian perguntou se queríamos pintar os brinquedos ou plantar. Manifestei a minha vontade que era plantar alguma árvore enquanto cada um escolhia sua próxima tarefa. Uma lista foi feita contendo os nomes de cada um de nós e também das crianças. Ao lado dos nomes estava a atribuição de cada um. Pronto! Logo, logo daríamos início à segunda parte do nosso mutirão.
Já dava para ver o resultado de tanto esforço. O jardim livre dos matinhos e já abrigando novas mudas de flores e também as árvores. O novo brilho multicolorido que vestia e protegeria os brinquedos da chuva e sol alegrava o ambiente e as crianças que ajudavam a pintar. Fiquei muito feliz em ver e sentir aquele espirito de equipe nos meus filhos e seus amiguinhos. Com certeza esse dia ajudou muito a semear a solidariedade na formação de cada uma das crianças que participou do mutirão. Mesmo sendo um número pequeno, valeu muito a pena.
Não fizemos tudo mas estava quase tudo feito quando bateu 16 horas. A diretora foi logo anunciando que estava na hora de parar. Me dirigi à ela dizendo, "Pena que não deu pra fazer tudo, né Lilian?!" Ela respondeu, "Pena mesmo mas deu pra fazer muita coisa. Quase tudo! Só me decepcionei com a falta de colaboração dos pais. Se mais pais tivessem comparecido ... ".
É mesmo! Se tivéssemos tido mais braços e mãos na certa teríamos acabado antes das 16 horas e quem estava lá não estaria tão cansado.
Depois de despedirmos, cada um tomou o seu rumo de casa. Chamei meus três filhos, a Tânia e o Henrique e fomos 'comemorar' na sorveteria da Rosa. As crianças foram correndo na frente e deixaram nós mães pra trás. A Tânia falou meio que aborrecida que a ideia não tinha sido tão boa como tinha imaginado. Retruquei, "Você deu uma solução Tânia. E foi muito boa sim! Só não foi excelente por que maioria dos pais não participou. Não foi culpa sua. Simplesmente a falta de cidadania do povo aqui no bairro, né. Fazer o quê!"
Cheguei em casa e logo lembrei da tradução que tinha que terminar para entregar na segunda-feira às 9 lá em Santo Amaro. O Vagner tinha pedido pra 'ontem' mas perguntei, "O que você vai fazer com uma tradução em plena sexta-feira à noite com uma família lhe esperando em casa? Enfiar na gaveta e deixar lá?" Ele pensou melhor e disse que poderia entregar na segunda e sem falta! Melhor assim.
As crianças tomaram banho e depois foi a minha vez. Enquanto assistiam um filme da Disney, tomei um banho quente e demorado. O meu corpo pedia aquele carinho para dar uma relaxada.
Pedi um pizza meia marguerita e meia peito de peru com catupiry e devoramos tudo com goles de Coca-Cola estupidamente gelada. O dia foi bom demais portanto coroamos o nosso empenho todo com uma deliciosa sobremesa caseira: mousse de chocolate!
Mais um filminho da Disney e depois todos pra cama. Resolvi deixar a tradução pro domingo. Os meus pais passariam lá em casa pra ver os netos e na certa pediriam pra leva-los pro parque. Teria tempo pra fazer a tradução. Pelo menos era o que eu pensava.
Acordei logo cedo sentindo dores insuportáveis pelo corpo todo. Nem conseguia levantar de tanta dor. Tive três filhos e confesso que nenhum parto me fez sofrer tanto.
O meu então marido percebeu que havia algo errado e perguntou, "Tudo bem contigo?" Respondi que estava sentindo muita dor e ele riu muito ao falar, "Quem mandou dá um de jardineiro e carpir!" Ele levantou e foi até o armário onde ficavam os medicamentos. Pegou um copo d´água e me deu logo dois analgésicos. Tomei e um tempinho depois capotei.
Acordei com as crianças berrando com a chegada dos meus pais. Levantei logo e me vesti pra receber os meus pais. Minha Mãe me cumprimentou com um beijo na bochecha e logo perguntou o motivo das olheiras e o vermelhão da minha pele. Nossa! Olheiras? Eu? Fui olhar no espelho e constatei que haviam olheiras escuras além do rosto queimado pelo sol.
Minha Mãe perguntou, "O que você andou fazendo minha filha?" Respondi que tinha participado do mutirão da EMEI. Ela interrogou e eu respondi, "Foi só pra ajudar Mãe. Fiz um pouco disso, um pouco daquilo." E ela, "Tipo o que?" Eu dei os detalhes, "Carpi junto com a Tânia e também plantei. Foi uma experiência em tanto Mãe! Nunca vou esquecer!" Ela me chamou de louca. Disse que não tinha emprego. Eu disse que depois de ter carpido a manhã toda, descobri que seria capaz de fazer qualquer coisa nesse mundo! Também tinha certeza que se eu precisasse carpir para botar comida na mesa eu conseguiria." Ela me olhou nos olhos e disse, "Acho que nunca vai ter que carpir pra ter o que comer mas se você achou válido, tudo bem minha filha". E paramos por ali.
Não consegui terminar a tradução naquele domingo. Liguei pro Vagner e expliquei tudo. Ele ficou sensibilizado e disse que poderia entregar até o final da semana. Que bom! Mais uma vez os anjos conspirando ao meu favor.
A semana começou e logo a quarta-feira chegou e a reunião da APM também.
Todos presentes concordam que o jardim ficou lindo e que os brinquedos super bem pintados. A Lilian não reprimiu quem não compareceu mas agradeceu quem vestiu a camisa com um buquê de flores e cartão. O pai que ajudou não estava presente mas o filho foi chamado e levou pra casa uma camiseta polo com um cartão.
No ano seguinte, já sem a verba da Prefeita Luiza Erundina, a APM se reunião e surgiu a proposta de construirmos uma horta maior que pudesse servir como modelo para a comunidade. Uma mãe surgiu que fosse um projeto comunitário liderado pelas mães da APM. Olhei pra Tânia, e vi que ela já estava me encarando. Mais que depressa disse, "Sei não. Melhor contratarmos um jardineiro e deixar ele elaborar e também conduzir o projeto." A Tânia falou que concordava comigo mas aquela mãe que sugeriu a participação das mães da APM resolveu fazer a sua ladainha: "Mas vocês precisam entender que o projeto é nosso e que podemos economizar dinheiro fazendo tudo nós mesmas! Temos um grande número de alunos e suponho que o número de pais também seja bem grande." Rapidinha respondi com toda a minha ironia enrustida, "Com certeza vamos economizar mas será que vai ter um grande número de participantes para revezar as tarefas com a horta?". Novamente a mãe se manifestou dizendo, "Claro que sim! E o jardim? Lembram do jardim? Dos brinquedos? Fomos nós que carpimos, plantamos e tratamos do jardim além de pintarmos os brinquedos!" Aí eu dei uma boa gargalhada e soltei o meu doce veneno, "Ah sim! Lembro sim! Vamos ver ... não me lembro ter visto você, nem ela, nem aquelas ... Aliás, nem dez pessoas compareceram! Eu sei o quanto foi trabalhoso por que nunca vou esquecer por que fiquei de cama no dia seguinte e na segunda-feira também. Sem contar os calos nas minhas mãos e a queimadura do sol no rosto. Não deu pra esquecer, né Tânia? Você também sentiu dor e ficou de cama. Lembro muito bem de algumas de vocês passando por aqui no sábado de manhã todas arrumadinhas pra passear com seus filhos e maridos. Nem bom dia nos deram! Apenas deram risadinhas. Não pretendo participar do projeto da horta e muito menos tirar o ganha pão de um profissional. Sabe o que aprendi? Cada macaco no seu galho!" A minha amiga Tânia falou bem alto que também não faria parte e que nada era mais justo do que o jardineiro ganhar o dele. A diretora ficou de saia justa mas mesmo assim perguntou se alguém tinha algo melhor em mente e se havia alguém que queria se candidatar para liderar o grupo. Esperamos por alguns bons minutos mas ninguém soltou a voz. Aí falei bem alto e claro, "Então, vamos chamar o Seu Mário para fazer o orçamento e começar logo esse projeto da horta!"
Muita coisa a gente só aprende mesmo quebrando a cara. Mas a gente aprende. E eu aprendi de verdade! Só atuo na minha praia. Na praia dos outros não me meto por que não conheço as profundezas. Sou macaca velha e sei muito bem onde fica o meu galho!