Dias Chuvosos
“Tem dias que a gente se sente um pouco, talvez, menos gente. Um dia daqueles sem graça, de chuva cair na vidraça” Assim, Raul Seixas inicia a música Profecias (1979). Confesso que achei bastante interessante este começo. É um trecho que nos faz querer imaginar e relembrar esta situação, o que juntamente com a melodia da música, meio depressiva por sinal, nos faz, tão de súbito, mergulhar nas incontáveis lembranças de dias tristes e sem cor, que momento ou outro experimentamos ao longo de nossa vida, e que com a música sentem-se encorajadas a vir a nossa consciência. Aliás, Creio ser este um dos grandes serviços da música: despertar em nós um específico estado de espírito. Ademais, e atendo-se ao título da crônica, diria que dias chuvosos é preciso para que apreciemos e reflitamos sobre nossas vidas, nossas angustias, nossos medos, nossas lembranças.
A chuva intensa quebrava sobre o para-brisa do carro que meu pai me emprestara. Minha aula de alemão havia acabado e eu me encontrava pronto para voltar para minha casa. Sentado ali, dentro do carro e observando a velocidade e a desenvoltura com que as gotas de chuva caiam no vidro e subitamente se espalhavam, formando aquele velho chiado inconfundível de chuva irrompendo contra uma superfície, e envolto pelo conhecido cheiro de terra molhada, o qual insistia em adentrar no carro, eu olhava para frente, mas não via nada além de lembranças. Era 17 de outubro de 2011 e naquele mesmo dia um grande amigo meu havia falecido.
A sensação de que somos completamente passivos e impotentes diante do tempo nos causa desconforto. Crescemos com a disponibilidade de usarmos de diversos recursos tecnológicos no transporte, na comunicação, no entretenimento, na saúde etc, mas mesmo assim, diante do tempo somos completamente incapazes de sobre ele exercer qualquer alteração. Não podemos retardar, avançar, ou parar o tempo. Mas, por outro lado, somos constantemente por ele alterado.
Impressionante como algo que para nós é usual e recorrente pode tão de súbito ser eternamente aprisionado no passado. Tal qual o tempo repentinamente nos roubasse algo para nunca mais devolver. A morte, embora eu não veja como único exemplo, assume com toda certeza o fator mais ilustrativo. E diante desta teimosa delinquência do tempo, que insiste em continuar nos privando daquilo que temos ou gostamos, não nos resta outra coisa senão recorrermos à nostalgia e às lembranças.
Estava dentro de um carro em um estacionamento cheio de veículos, mas completamente deserto de pessoas. Engraçado como, por certas vezes, o que sentimos converge bastante com o que vemos. Afinal, a lembrança de que naquele dia havia perdido um grande amigo também me fazia senti um tanto “deserto” por dentro.
Recostar no banco do carro, ligar o automóvel, tentar vislumbrar o horizonte verde a minha frente por meio do vidro molhado e assim, exatamente assim mesmo, pensar na vida, pensar em mim mesmo pensando na vida e no modo como eu, ali, me encontrava. Infelizmente, tudo isso não mudaria nada do que aconteceu, mas com toda a certeza marcaria este momento em minha memória de um modo único e especial. Do modo como eu escrevo agora. Não me restava outra coisa senão finalmente dar a partida no carro e me conduzir de volta para casa. Quem sabe, assim como o carro, que nos ajuda a sair de um local e chegar em outro, também meus sentimentos pudessem migrar do saudosismo melancólico para algo melhor.
Pronto. Tinha que sair dali. Antes porém, decido ligar o rádio. Afinal de contas, nada melhor do que a música para nos fazer despertar um específico estado de espírito.