FERA
Fera
Um sambentense arretado compôs certa feita que "a solidão é fere, a solidão devora"… Realmente, a solidão é agressiva como uma fera. Corrosiva, " comedora faminta", como um ácido, e sua fome-acidez machuca, chega a devorar a disposição e a alegria da pessoa, desanimando o solitário.
Mas, prefiro pensar no trecho seguinte: "é amiga das horas, prima-irmã do tempo". Um ser que estranhamente devora é também um ser amigo-primo-irmão. Sentimento paradoxal, a solidão nos traz uma oportunidade escassa nestes conturbados tempos ditos modernos. Uma oportunidade com uma encruzilhada curiosa. Você pode decidir entre a corrosão devoradora e a amizade para o passar das horas.
Eu não sei você - escreva seu texto para expressar seu pensamento - mas prefiro a estrada que me leva à solidão amiga-irmã do meu pensamento, da minha criatividade, do meu processo de criação. No silêncio e pelo silêncio e para o silêncio eu penso, reflito, produzo. Em silêncio eu melhoro, reajo pacificamente às mazelas. Interfiro com meu pensamento em todas as guerras, das domésticas às mundiais, passando pelas dos vizinhos.
Estou só agora. Ouço passos. Ouço grilos e pernilongos. Quereria ouvir passarinhos e ronronar de gatos amantes em telhados.
Estou só agora. Ouço ao longe duas canções distintas - uma de uma igreja, quem sabe… Ouço também meu televisor a dizer coisas vãs, fazendo-me a companhia que pedi, ao apertar seu botão ON que desejara ser o OFF do resto das coisas ao meu redor. Quase ouço minha própria respiração. Mais do que ouvir, chego a sentir o momento, este instante único que não ressuscitará em minhas memórias. Isto é quase mágica, milagre. E isto só se dá em razão de estar só, com tempo para calar e refletir.
Refletindo, quero lembrar as oportunidades que temos de permanecer em e no silêncio. Muito poucas. Corremos e trabalhamos mais que refletimos. Quero sempre nesta análise usar o verbo refletir em vez de fazer uso de pensar. Quero dizer refletir sobre mim mesmo, refletirmos sobre nós, refletir em mim e nós as reações a partir das ações dos outros. Refletir sobre o mundinho ao nosso redor, sobre o mundo mesmo. Sobre o nosso pequeno universo e o Universo.
Será que não está faltando solidão para que o ser humano dê mais valor á companhia? Será que é porque hoje há tantos meios de comunicação, tanta facilidade em se comunicar que falta a felicidade de se comunicar?