O Camilo nunca foi meu amigo
Ao entrar naquele ambiente, me deparei com um segurança que me chamou a atenção. Ele nem me notou, atento aos seus afazeres. Mas as rugas no rosto, os cabelos já bem grisalhos, e aquela cara fechada comum ao seu ofício, não impediram que eu o reconhecesse: era o Camilo.
Ver aquele sujeito novamente depois de tantos anos me trouxe lembranças há muito tempo esquecidas, da minha época de menino lá no bairro onde nasci e me criei. Éramos um bando de moleques que vivia pra rua atrás de pipa, carrinho de rolimã e, lógico, bola. Havia um terreno baldio que ficava a uma quadra da minha casa, vizinho à chácara do avô do Lucas, e ali fizemos o nosso campinho. Capinamos o mato, construímos as traves com troncos de árvore, cavucamos os buracos para colocá-las de pé, marcamos as linhas do campo com cal. E nosso futebol era sagrado: saía voando do colégio, às cinco da tarde, só passava em casa para deixar a bolsa e tirar o uniforme, e corria pro campinho. A partida só acabava quando aconteciam duas coisas: ou quando ficava escuro e ninguém mais enxergava a bola, ou quando aparecia o Camilo.
Naquele tempo o Camilo devia ter uns treze anos, bem mais velho que a gurizada da nossa turminha. E ele era o terror daquelas redondezas. Não respeitava os mais velhos, xingava todo mundo com os piores palavrões, andava sempre sujo e molambento. Os tênis que sumiam dos quintais, diziam que era ele quem roubava. Até no dia em que duas galinhas sumiram do galinheiro do seu Zito, foi ele o culpado. Mas a gente tinha medo do Camilo por outra coisa: ele adorava uma briga.
Assim, quando estávamos brincando de bola no campinho e ele aparecia, o melhor era acabar com o jogo e ir embora pra casa. Porque ele fazia de tudo pra arrumar encrenca com alguém, quem quer que fosse. Chegava intimidando todo mundo, empurrando, xingando, dando de dedo na cara, dizendo “tá olhando o quê? Eu tô cagado por acaso?” – ele sempre falava isso. Por isso a gente nem levantava a cabeça quando ele estava por perto. Um dia o Bino resolveu encrespar porque o Camilo deu tantos petelecos na orelha do Marinho, que ela ficou parecendo um pimentão – acho que naquele dia o Marinho ia ficar surdo se ninguém acudisse. Mas foi a pior besteira que o Bino fez na vida, porque o Camilo quase o moeu de pancada. Só parou de bater porque um homem que passava na rua viu que aquilo ia acabar em morte. Ainda assim, o Camilo avançou pra cima do homem, cheio de fúria. Só que o sujeito era forte, lhe deu uns cascudos e o pôs para correr. Mesmo assim, ele saiu gritando os mais terríveis palavrões e jurando o cara de morte.
Pois então era assim: a brincadeira era boa quando o Camilo não vinha. Quando ele chegava, acabava a brincadeira.
Mas um dia aconteceu algo que eu jamais esperaria. Como de costume, cheguei em casa depois da aula só pra deixar a bolsa e tirar o uniforme. A bola tinha ficado comigo na véspera, e como a molecada já estava descendo pro campinho, eu não podia me atrasar. Só que o gás tinha acabado e minha mãe quis que eu a ajudasse a carregar o botijão vazio pra fora, e trazer o cheio pra trocar. Gás do diabo, precisava acabar justo naquela hora? Muito a contragosto, ajudei a fazer o serviço, e quando finalmente fui liberado, saí como um doido pela rua, com a bola debaixo do braço. Ao virar a esquina, dei de cara com três moleques do Santa Helena. Esfriei na hora. E se eles quisessem tomar a bola de mim? Eu que não agüentava nem um, o que iria fazer contra três? Encurtei o passo e baixei a cabeça, abraçando-a mais forte. Fiz de conta que não os tinha visto e atravessei a rua. Não teve jeito. Eles me cercaram.
_Passa essa bola pra cá, seu bosta!
Não dava nem pra correr. E o campinho não estava tão perto, mesmo que eu gritasse, ninguém ia me ouvir. Um deles agarrou a bola e quis arrancá-la de mim, mas eu resisti, segurando-a mais forte ainda. Ele então me olhou raivoso e deu um chute na minha perna.
_Larga essa pôrra, filho da puta!
Com o pontapé eu cambaleei, mas ainda assim continuei com a bola presa debaixo do braço. Daí outro moleque veio pra cima de mim e me deu um soco no rosto. Já meio desequilibrado, acabei caindo no chão. Foi então que ouvi um berro, e meio atordoado, só consegui vislumbrar a imagem de alguém vindo da esquina e correndo em nossa direção. Ao chegar mais perto, ele deu um salto e cravou os dois pés no peito do menino que tinha me esmurrado, derrubando-o no chão. Então ele se voltou e de novo com os pés acertou o rosto daquele que tinha me chutado a perna. O terceiro garoto nem teve tempo de piscar, porque o cara avançou sobre ele e soltou o braço. Eu me arrastei pro lado do muro e só então percebi quem estava me ajudando: era o Camilo. Em dois tempos ele encheu de pancada os moleques do Santa Helena, que saíram correndo com o rabo entre as pernas – pude ver que um deles tinha o nariz cheio de sangue.
Depois o Camilo se voltou para mim, agachou do meu lado e me estendeu a mão.
_Tá tudo bem contigo, irmãozinho?
Eu me escorei no braço dele e me levantei. Ainda segurava a bola, tremendo que nem uma vara verde.
_Tá – fui capaz de dizer.
_Esses caras não vão mais aborrecer. Botei eles pra correr.
Olhei para a rua e não havia mais nem sinal dos três.
_Obrigado – eu lhe disse, ainda sem acreditar no que tinha acontecido.
_Que nada. Amigo é pra essas coisas...
E saiu andando radiante, parecendo satisfeito por ter me salvado.
Amigo. Que eu soubesse, o Camilo não era amigo de ninguém. Não era e nunca veio a ser. Ele continuou estragando nossas brincadeiras, continuou infernizando a vida da molecada, continuou sendo o terror da nossa vila. E pensando bem, não foi pela amizade que ele me protegeu naquele dia. Foi pela briga, que era o que ele mais gostava.
Nunca mais ouvi falar do Camilo, depois que saí da casa dos meus pais. E agora, vê-lo ali naquele salão me fez sentir muito bem. Não por saber que ele está vivo e com saúde – mesmo porque o Camilo nunca foi meu amigo. Mas por sua imagem ter me trazido, mesmo que só por aquele momento, lembranças da minha infância que já tinham ficado para trás...