Tem menino no meio
A fazendinha de Zé Ambrósio tinha de tudo, nunca estava à mercê de ninguém, mas sempre perguntavam por quanto a venderia. Respondia com um sorriso como se fossem aquelas cobiças um elogio ao único bem que construira em vida, mas que a seca vinha destruindo, como doença que começa na pele e vai entrando corpo adentro do doente. Mesmo assim, ainda davam algum preço pela sua fazenda.
Ultimamente, tinha deixado o costume de comparecer, na entrada do distrito, à bodega de Zé de Tota, aonde ia “dar uma saidinha de casa” e de onde trazia assunto, sal, bolacha ou dois dedos de rolo de fumo e, às vezes, fósforo ou poucos gramas de jabá. No final do ano, comprava corda para a amarração dos seus bodes, das suas três vacas e de um boi, vez ou outra, de um bezerro planejado para substituir o pai que seria vendido ao abatedor da cidade. Agora pouco visitava o açougue também para evitar conversas sobre falta d’água ou más notícias sobre os bichos de criação; e, sobretudo, para não passar pela beira do açude, reduzido à terra engilhada, cheia de rugas, cortada pela quentura do sol.
Suportava tudo isso ao olhar da sua casa aquela natureza sofrida, quase morta, como era o caso da sua derradeira vaca. Certa manhã, avistou, debaixo do juazeiro, dois homens matando seu bicho de estimação. Cansado pela sede, o bode nem reagia, nem berrava, como consentisse tudo aquilo para se livrar do sofrimento da seca. Ambrósio foi pegar a espingarda de cartucho, pendurada no armador do quarto de dormir, quando a mulher abriu os olhos e perguntou: - Aonde vai? Quase balbuciando, justificou: - De baixo do juazeiro, estão matando Espiga. A mulher, afastando ideia de vingança, perguntou o porquê. Esclareceu ele: - A mulher deles já está preparando o fogo com uns gravetos que seu moleque apanhou fora da sombra do juazeiro. Maria, como aconselhasse a guardar a arma, pediu: - Venha cá. É fome como a da gente e tem menino no meio. Riqueza separa a gente, mas a miséria deixa tudo igual. Na fome, nada é de ninguém... Conformado, Ambrósio se deitou na rede do terraço; esperou almoçar o resto de Espiga e, em voz grave, repetia a si mesmo as palavras da mulher: “Na miséria, nada é de ninguém”...