Você sabe

Devia ser umas nove horas da noite, eu era mais uma entre tantas outras pessoas cansadas naquele terminal de ônibus, desejando chegar em casa o mais rápido possível depois de um dia cheio de trabalho, estudo ou os dois e eu estava com raiva, muita raiva de... bem, eu já nem lembro de quê. Eu não saberia dizer o quê exatamente fez com que eu olhasse para aquele garoto, talvez fosse o local, o horário, talvez fosse o tamanhinho dele. O garotinho era só mais um menino no meio daquelas crianças que pulavam a hora da escola, da brincadeira e adiavam a hora de dormir, soltas no meio da multidão, presas dentro de uma dura realidade que as colocava ali no meio de um dos tantos terminais de ônibus de Fortaleza.

Naquele momento, eu esqueci do ônibus que estava esperando, esqueci a raiva e a única coisa que passava pela minha cabeça era o que aquele garoto estava fazendo ali. Na verdade era óbvio, ele estava trabalhando. Assim como outras crianças, eles discursava um texto ensaiado que quase sempre começava como "eu tô aqui aqui realizando o meu trabalho...". Talvez isso tenha aprendido minha atenção, a alguns metros de onde eu estava, um garoto de uns sete anos de idade estava realizando seu trabalho, que consistia em vender caixinhas com bombons de banana e morango.

Então alguém do meu lado chamou "garoto" e em seguida, o menino estava vindo em direção a onde eu estava. No seu rosto, um olhar curioso, assustado, como de um animal acostumado e levar chute, fiquei pensando o quanto do monstro existente no ser humano aquele garoto já havia conhecido com tão pouca idade.

_ Ei, qual seu nome? _ eu perguntei quando ele terminou de "atender" a mulher do meu lado.

_ Ué, você sabe _ ele respondeu.

_ Como eu posso já saber seu nome?

Eu ri e ele pegou uma das caixinhas de bombom para me mostrar, sem levantar a cabeça, sempre olhando pra baixo, sempre assustado.

_ Quanto é? _ eu quis saber.

_ Um real.

Eu tirei as moedas do bolso e coloquei na mãozinha dele, ele olhava e virava as moedas, conferindo talvez. Então me ocorreu a pergunta:

_ Você sabe contar?

_ Não.

_ Então como você sabe que não estão te dando o dinheiro errado?

Ele olhou pra mim dessa vez e deu de ombros, como se aquela ideia nunca tivesse passado pela sua cabeça. Mesmo assim, ele se afastou sem dizer nada e foi entregar o dinheiro para alguém que eu não consegui ver, depois voltou para onde eu estava e me entregou uma das caixinhas, a que tinhas os bombons de banana.

_ Eu quero as de morango, carinha _ falei.

_ Você não gosta de doce? _ perguntou.

_ Eu gosto, morango é doce.

Ele não disse nada e me entregou a caixinha com os bombons de morango, ele olhava pra mim e a até sorria, mas sempre distante e assustado, uma postura que parecia impregnada em quem ele era, pelo menos ali. Tanto que se não fosse seu tamanho ou seu olhar, quem poderia dizer realmente que ele era uma criança?

_ Qual o seu nome? - tentei de novo.

_ Você sabe ué.

_ Sei não.

_ É Derlan.

Depois de dizer o nome, ele voltou a baixar a cabeça e olhar apenas para as caixinhas que carregava, mas então ele fez um "psiu" baixinho pra mim e fez um gesto pedindo que eu abaixasse a cabeça, o que eu fiz.

_ Ei, me dá três dessas balas? _ ele cochichou.

Eu sorri e entreguei a caixinha para que ele mesmo tirasse as que queria.

Eu queria fazer muitas perguntas ao pequeno Derlan, queria dizer muitas coisas, mesmo sem saber exatamente o quê. Eu olhei para o seu cabelo claro e imaginei os fios brilhando com a luz do sol enquanto ele corria atrás de uma bola remendada no meio de um campo de terra batida. Eu queria perguntar se ele jogava bola, queria perguntar sua idade, queria dizer muitas coisas que eu nem sabia o que era, queria ouvir o que ele tinha pra falar, mas não pude. O meu ônibus chegou e Derlan me devolveu meus bombons, a mulher do meu lado (a que chamou ele) comentou que ele havia pego bem mais que três balas e eu quis responder que não era sua culpa, ele não sabia contar.

O garoto já havia se afastado, estava falando para outro cliente que ele, Derlan, quase havia sido atropelado por um ônibus ainda naquela mesma noite. Eu já estava entrando no ônibus, então voltei e chamei o garoto que ainda hesitou um pouco antes de se aproximar novamente. Eu peguei minha caixinha de bombons e coloquei na mão dele.

_ Fica pra você _ falei.

_ Pra mim? _ ele perguntou baixinho, uma certa incredulidade na voz, enquanto eu me afastava em direção ao ônibus.

Eu fui embora tentando imaginar se eu já havia visto aquele garoto antes, ou se veria de novo. Eram sempre tantas crianças naqueles terminais, tantos Derlans, tantas Claras, tantos Lucas, tantas histórias e nomes. O que tinha aquele garoto magrinho que me fez olhar pra ele esquecer toda a raiva boba que eu vinha sentindo o dia inteiro?

Na saída do terminal, eu olhei pela janela e avistei outras crianças trabalhando, eu quase podia ouvir suas vozes enquanto falavam o mesmo discurso que eu ouvi Derlan fazendo poucos minutos antes. Só então eu percebi a verdade por trás das poucas palavras daquele garoto. A verdade é que ele era como as outras crianças que estavam ali, umas de cabelo claro, outras de cabelo escuro, brancas, morenas, mais altas, mais baixinhas. Sim, todas com sua própria história, mas no final eram todas crianças que passam pelo dia invisíveis diante dos "adultos ocupados", crianças com suas necessidades ignoradas e seus direitos violados, crianças que deveriam estar brincando, mas estão em algum lugar realizando seu trabalho. Eu poderia ter falado com qualquer uma delas, mas falei com o pequeno Derlan. Eu não sabia o nome de nenhuma outra criança ali, assim como antes não sabia o dele. Eu perguntei o nome dele na tentativa de saber quem ele era e ele era todas as outras crianças ali e todas as outras crianças eram ele. Na minha cabeça veio a memória da sua vozinha falando "você sabe ué". Ele estava certo, eu sabia, todos sabemos.