SEIS VIDAS PARA KATE
Querido diário eletrônico. O evento desta manhã é, no mínimo, interessante. É corriqueiro, sim. Entretanto, como tudo na vida, carrega em si temas correlatos.
Noite silenciosa. Por volta de uma da madrugada, gatos brigam no telhado abalando a relativa paz. Kate não está dentro de casa dormindo. Então fica evidente que ela está envolvida na briga. O barulho da briga é assustador. A luta demora mais que o que julgo normal, por tudo o que vi de gatos até hoje. Eles rolam no telhado.Com certeza quebram alguma telha. Todos acordamos e vamos para o quintal. Um gato branco foge para um outro telhado. E Kate? Onde está Kate? Sem sinal dela. Depois de um tempo, nos recolhemos e vamos (tentar) dormir, perturbados com o ocorrido. Meia hora depois, eu e minha esposa levantamos e vemos a Kate andando muito lentamente sobre o telhado de metal da garagem de ônibus. Ela anda e pára. Pára e fica parada, como se ferida ou morrendo. Chamamos por ela. Ela não atende. O telhado nos parece inacessível. Desolados, perplexos e cansados, voltamos para a cama para, deitamos de barriga pra cima pensando em sobre o que fazer. Kate está há quase um ano conosco e é como se sempre fosse nossa companheira. É uma criatura que vem enchendo nossa casa de alegria. Ela apagou diversos focos de incêndio neste ano – micro incêndios comuns à vida doméstica –, com seu poder e beleza dengosa, típicos de felino. As variadas poses da Kate deitada, até hoje, passados meses, são uma atração lá em casa (posso entender por que as modelos nas revistas não perdem a graça). E aí? Como dizer pra minha filha que a Kate está morta ou morrendo no telhado de aço inoxidável da empresa de ônibus?
Cinco e meia da manhã. Estamos de novo no quintal. Minha filha na cama, provavelmente curtindo seus pesadelos. Na altura do telhado, Kate, imóvel, sob a novidade da chuva. Chuva fina e fria. Seis horas. Dia clareando. O que fazer? Chamar o Super Homem? Chamar os bombeiros? Faço cálculos matemáticos tendo em vista minha pequena escada de madeira. Pulo o muro da minha casa. Invado o terreno do vizinho, sob chuva. Apoio a escadinha no muro mais alto, da garagem de ônibus. Consigo subir até o alto do muro. [necessário lembrar aqui que eu tenho muito medo de altura, informação que faz toda a diferença] O muro está molhado, o que torna a operação extraordinariamente arriscada pra mim. Pois bem. Enfrento um dos meus maiores medos e equilibro-me no alto do muro molhado. Estico a mão em direção a Kate. Ela está, para a nossa alegria, acordada. Mexe apenas com a cabeça, e o faz lentamente, como que ferida, ou zonza. Não tenho coragem de elevar as duas mãos, pois isso poderia me desequilibrar e provocar minha queda. Tenho a idéia de pedir a casinha amarela de viagem. Recebo a casinha. Coloco a casinha em cima do telhado, com a porta aberta perto dela. Tudo à beira do telhado. Num deslize, podemos cair todos: eu , Kate e casinha. No pátio da garagem, até o cão pitbull parece compreender a dificuldade da operação. Kate não esboça reação. Espero alguns minutos. Penso em empurrá-la pra dentro da casinha com uma das mãos, mas tenho medo de cair ao esticar o braço nessa tentativa. Espero. Chuva fina cai. Então, como que num milagre, Kate se arrasta até o interior da casinha. Motivo de comemoração. Pego com cuidado a caixa amarela com o peso da gata gordinha e desço, com minha missão cumprida. Uma das inúmeras superações, das muitas que tive que realizar, diante das muitas que ainda terei.
Kate já dentro de casa. Em cima do sofá da cozinha. E agora? Provavelmente esteja com alguma fratura. Nada disso. Mais uma vez, somos surpreendidos com uma Kate que sai andando. Ela não estava ferida, mas apenas – provavelmente – em estado de choque depois da estressante luta com o outro felino. Não podemos saber exatamente o que houve entre eles. Porque lutaram. Kate é castrada. Seria esse o motivo? Durante o embate selvagem no telhado eu tive a impressão do som de uma queda. Mas Kate está aparentemente inteira. Caminha pela casa. Come um pouquinho de ração. Bebe água. Toma seu banho de língua. E dorme, fazendo mais uma de suas poses. Menos um problema. Aliviado, pego o carro e vou ao médico que já estava marcado. Olho pras pessoas que esperam no corredor do posto de saúde, todas com aspecto doente. Penso no meu feito matinal. Penso que sou viril. Envergonho-me de estar indo ao médico. Desisto da consulta. Dirijo-me para mais um dia de trabalho. Cá estou – meu emprego é do tipo que permite a gente ler e escrever. Agora vou ligar pra casa pra saber como está a Kate. Tenho quase certeza de que estará bem e pronta pra gozar as seis vidas que lhe restam, posudamente.
(L.F., 17/09/2013)