Se Alguém Pedir, Você Dá?
Dar ou não dar esmolas? Ou será que deveríamos ensinar a pescar aos que pedem esmola?
Certa vez ouvi o Betinho (Herbert de Souza) dizer que fica meio complicado ensinar uma pessoa qualquer coisa se ela estiver de estômago vazio.
Refleti sobre a frase e tenho que concordar. Não é nada fácil querer aprender quando a nossa barriga começa a dar sinal de vontade própria ao roncar de tanta fome. Melhor matar a fome primeiro e garantir a atenção do aprendiz. E se você tiver sorte, ainda cativa o aprendiz com a sua gentileza.
Viver na maior metrópole da América do Sul é uma caixa de surpresas. Você depara com o inesperado a cada novo dia. Seja andando pela rua ou dentro de algum meio de transporte, você pode testemunhar de tudo. Não duvida de nada!
Uma certa vez, acreditem se quiser, vi um andarilho fazendo o seu bife mal passado na calçada da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio em frente do Banco Itaú num dia infernal de janeiro. Digo na calçada mesmo! Onde a gente anda! Dá pra acreditar? Eu pensava que era uma miragem, só que miragem não vem acompanhada com cheirinho de carne né? Ele falava bem alto e quem quisesse podia ouvir a sua cumplicidade com aquele bife: "Mais um pouquinho e você tá prontinho."
Me comovi com aquela cena e sem muito pensar aproximei e disse, "Moço? Tô vendo que seu bife tá quase pronto. Toma aqui um dinheiro pra você comprar um arroz, feijão e salada naquele boteco pra completar." E coloquei o dinheiro naquela mão toda calejada. Ele olhou pra mim e disse, "Obrigado moça! Mas vou usar o dinheiro pra comprar um contra filé. Adoro carne, sabe? Arroz e feijão não ligo não." O que fazer? Apenas sorri. O homem mostrou a sua solidariedade ao oferecer um pedacinho do seu bife muito mal passado. Eu, na minha perfeita lucidez agradeci e respondi que já havia almoçado e segui o meu caminho.
O inverno castiga o morador de rua, principalmente as mães e consequentemente os seus filhos.
Nunca vou me esquecer uma certa manhã de segunda-feira por volta das 7:10 indo pro trabalho no ônibus Apiacás - Centro. O transporte coletivo lotadíssimo mas eu sentada pois pegava o mesmo no ponto final. Sorte a minha! É nada agradável levar uma bolsada, ser esmagada por uma mochila escolar ou ter sua meia calça desfiada por um punk cujas calças são enfeitadas com tachinhas que rasgam tudo ao mais leve tocar ou esfregar. Nenhuma mulher merece!
Na parada em frente ao Cemitério da Consolação o mal cheiro avisa a chegada de mais uma passageira: uma jovem com toda pinta de moradora de rua. Aparenta estar envergonhada e só depois de dois pontos ela se manifesta: "Bom dia todo mundo! Não posso dizer que o meu dia começou bem por que nem dormi direito. Com aquele frio todo e meu filho sem ter leite ... (ela dá uma respirada) ... é, tá fogo. Por isso que estou aqui. Já é o terceiro ônibus que tomo por que não consegui o dinheiro pra comprar leite pro o meu filho e os dois da minha amiga que tá cuidando do meu menino agora. Se puder ajudar, fico grata." E nisso a jovem começou o seu calvário naquele corredor que mais parecia uma lata de sardinhas. Obviamente que alguns passageiros estavam mais preocupados em esquivar daquela andarilha para que suas roupas não tocassem nas delas. Imagine só se a mão dela ou a perna esbarrasse num deles? Seria uma paranoia coletiva. Chegando na catraca ela deu um passe ao cobrador que no mesmo instante devolveu dizendo, "Se quiser, pode passar por baixo." Ela agradeceu e deslizou por baixo da catraca com a maior facilidade. Alguns passageiros falaram bem alto, "É! Deixa o chefe ficar sabendo que o cobrador deixa mendigo passar por baixo!" O cobrador ficou na dele mas o motorista parou o ônibus e soltou a verba, "Quando eu paro o meu ônibus e um pobre coitado sobe é por que eu deixei e o meu colega sabe muito bem o que tá fazendo, viu! A gente sabe quem é quem nessa linha. A gente pode não ter muito estudo mas a gente reconhece quem é quem e não é pela roupa não! É pela educação! Pela maneira de cumprimentar ou não cumprimentar logo de manhã cedo. Portanto, cada um cuida do seu nariz, ok?" E assim prosseguimos a nossa viagem ao Centro.
As mãos da moça exibiam uma única moeda que nem dava pra comprar um pacote daquela pipoca doce bem da sem vergonha! Imagine lá um litro de leite! Chegando perto do meu banco ouvi a passageira do meu lado dizer bem nítidamente e alto, "Nossa! Que cheiro de pinga!" Todos olharam para a moça pedente inclusive eu. Não sei como os outros a olharam mas eu a vi com os meus próprios olhos. Olhos de quem dormiu que nem uma rainha coberta por dois edredons e uma manta. Tentei pintar um quadro na minha cabeça daquela moça acalantado o seu filho pequeno naquela noite gelada. Sem dúvida alguma ela tomou seus goles de pinga de uma garrafa comunitária que passou de mão em mão. Só mesmo alguma bebida alcoólica para espantar um frio daqueles da noite anterior. Como resistir à única solução capaz de minimizar o seu dilema aquela hora da noite?
Abri a minha bolsa e peguei o porta-moedas. Dei uma olhada e vi que não daria para muita coisa. Peguei minha carteira e retirei uma nota de dez reais e aguardei a moça aproximar.
Quando ela já se encontrava bem do meu lado esquerdo falei, "Aqui moça. Só uma coisa antes, por favor." E ela pegou a nota e disse, "Pode falar dona."
Olhei bem firme no seu rosto e ela me devolveu o mesmo olhar. Desabafei, "Olha, quando você descer desse ônibus vai direto à padaria e compra o leite do seu filho e das outras crianças. Espero que você tenha juízo ao usar o troco e que não precisa tomar pinga esta noite por que pinga não é bom pra ninguém. Eu não tenho como saber se você vai realmente comprar o leite mas Deus sabe. Ele vê tudo! Se você precisar de ajuda, procure o Padre Romano lá na Igreja da Consolação. Ele sempre ajuda quem precisa e lá tem onde você pode tomar banho, cortar o cabelo, cuidar do seu filho direitinho, tirar documentos e se alimentar. Procure pelo Padre Romano, tá?" Acho que foi melhor dizer aquilo do que desejar 'Boa Sorte'.
A moça sorriu, agradeceu e prometeu ir até a Igreja da Consolação que ficava bem pertinho do ponto onde ela desceu.
Uma senhora me fitou e disse, "Ela te fez de otária, sabia?" Eu simplesmente respondi, "Pode ser mas o meu coração diz que fiz o certo. Deus tá vendo que fiz a minha parte. Nunca tive que dormir na rua, tão pouco consigo imaginar o frio que fez ontem à noite, nem quero sentir. Mas com certeza se eu sentisse, tomaria cachaça pra me esquentar por que na certa não teria nenhuma manta para me aquecer." Não ouvi mais nenhum gracejo, nem comentário maldoso. Em menos de cinco minutos já estávamos na frente da Biblioteca Mário de Andrade e eu quase em frente do prédio onde eu trabalhava.
Mas, a vida também conspira oferecendo momentos especiais de puro prazer!
Luxo foi ter ouvido Edson Cordeiro no início da carreira cantando ao ar livre na Rua 24 de Maio com a Avenida Ipiranga no frio, no calor, debaixo de chuva, no sol ... nas quatro estações por uns dois anos. Com o maior prazer dei a minha parte do cachê de cada espetáculo que assisti. Aquela voz me fez sentir sublime e me deixava em ponto de bala para enfrentar a tarde repleta de aulas. Até hoje ouço Edson Cordeiro quando quero sentir 'renovada'. Basta colocar um dos CDs dele que tenho. Solto a minha voz e faço meu dueto com o Edson! Graças a Deus que vivemos numa democracia e ainda podemos fazer o que bem entendemos entre quatro paredes! ;-)
Também tive o prazer de ouvir o menino Charles da Flauta tocar em frente do Mappin bem pertinho do Teatro Municipal. Era simplesmente divino caminhar pelo Centro e ouvir aquele menino encher o espaço todo com o seu chorinho naquela flauta mágica! O Centro de Sampa parava para ouvir aquela minatura do Altamiro Carrilho colorir o som de verde e amarelo toda vez que tocava 'Aquarela do Brasil'!
Um certo dia, após muitas aulas e quatro ônibus entre minha casa, o Centro e Santo Amaro, estava eu finalmente a caminho de casa quando o ônibus parou em frente ao Hospital das Clínicas na Avenida Dr. Arnaldo e um homem jovem bem-apanhado trajando camiseta branca, jeans e aproximadamente 30 anos de idade subiu com o seu violão, pediu licença ao motorista e passageiros e resumiu o por quê dele estar ali naquele momento.
Aquele homem não teve vergonha nenhuma em contar o seu sonho maior que era correr no 'New York City´s Marathon' no ano seguinte mas como conseguir o dinheiro para sua passagem e hospedagem? 'The Big Apple' não ficava logo ali não. O seu salário era pequeno demais e mal proporcionava o básico para sobreviver com dignidade e ainda ajudar seus pais. Não tinha condições nenhuma para manter aquele esporte portanto, o único jeito era pedir ajuda aos passageiros dos ônibus no caminho para o trabalho e depois de volta pra casa após o expediente de cada dia. Depois disso era treinar, treinar e mais treinar até se cansar.
Ele se lembrou de falar dos inúmeros pares de tênis que o maratonista precisava comprar não só pra treinar mas também pra correr pra valer nas maratonas.
Aquilo me fez lembrar a minha aluna Tereza, cujo irmão corria maratonas pelo mundo inteiro. Eram três pares de tênis que o irmão caçula consumia a cada mês! Graças a Deus ele ganhava bem e que seus familiares e amigos mais chegados o presenteava com tênis de marca para treinar. Ela me contou que ele adorava ganhar tênis mas mesmo assim vivia comprando tênis por que nunca tinha o suficiente por que a sola gastava à toa. Ele corria pro trabalho e de volta além de correr nos fins de semana. Haja tênis!
O busker (artista de rua em inglês) deixou claro que não queria esmola, queria apenas uma contribuição em troca da canção que iria nos oferecer. Não havia valor estipulado. Cada um dava o que podia. E quem não podia? Ele disse, "Lembra de mim na hora que estiver orando, tá bom!?"
Nisso, ele pegou o seu violão Di Giorgio e começou a dedilhar. Hummmm ... parecia que tocava ... parecia não! Era sim, 'Prelúdio Pra Ninar Gente Grande'!!! Ou mais conhecida como 'Menino Passarinho' do grande Luiz Vieira! Eu morava em New Jersey, USA (1962) e tinha apenas um ano quando essa canção estourou de norte ao sul do Brasil mas foi lá nos EUA que ela me ninou infinitas noites na voz do seu criador Luiz Vieira com o meu Pai fazendo backing vocals. Até hoje esta canção é uma das prediletas do meu Pai e minha também! Como não colaborar com esse moço? Ele dava um verdadeiro show de talento e carisma naquele fim de tarde cujo sol mergulhava no horizonte daquele céu do alto do Sumaré já pertinho da Igreja Nossa Senhora de Fátima. O canto daquele corredor de maratona pulsava com tamanha força e seus dedos deslisavam nas cordas daquela guitarra de tal forma que comoveu a todos naquele ônibus e por alguns minutos eu juro que vi um menino passarinho se revelando e a sua tremenda vontade de voar!
Querendo ouvir 'Prelúdio Para Gente Grande Dormir' basta colar e visitar >>> http://letras.mus.br/luis-vieira/715923
Dar ou não dar esmolas? Ou será que deveríamos ensinar a pescar aos que pedem esmola?
Certa vez ouvi o Betinho (Herbert de Souza) dizer que fica meio complicado ensinar uma pessoa qualquer coisa se ela estiver de estômago vazio.
Refleti sobre a frase e tenho que concordar. Não é nada fácil querer aprender quando a nossa barriga começa a dar sinal de vontade própria ao roncar de tanta fome. Melhor matar a fome primeiro e garantir a atenção do aprendiz. E se você tiver sorte, ainda cativa o aprendiz com a sua gentileza.
Viver na maior metrópole da América do Sul é uma caixa de surpresas. Você depara com o inesperado a cada novo dia. Seja andando pela rua ou dentro de algum meio de transporte, você pode testemunhar de tudo. Não duvida de nada!
Uma certa vez, acreditem se quiser, vi um andarilho fazendo o seu bife mal passado na calçada da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio em frente do Banco Itaú num dia infernal de janeiro. Digo na calçada mesmo! Onde a gente anda! Dá pra acreditar? Eu pensava que era uma miragem, só que miragem não vem acompanhada com cheirinho de carne né? Ele falava bem alto e quem quisesse podia ouvir a sua cumplicidade com aquele bife: "Mais um pouquinho e você tá prontinho."
Me comovi com aquela cena e sem muito pensar aproximei e disse, "Moço? Tô vendo que seu bife tá quase pronto. Toma aqui um dinheiro pra você comprar um arroz, feijão e salada naquele boteco pra completar." E coloquei o dinheiro naquela mão toda calejada. Ele olhou pra mim e disse, "Obrigado moça! Mas vou usar o dinheiro pra comprar um contra filé. Adoro carne, sabe? Arroz e feijão não ligo não." O que fazer? Apenas sorri. O homem mostrou a sua solidariedade ao oferecer um pedacinho do seu bife muito mal passado. Eu, na minha perfeita lucidez agradeci e respondi que já havia almoçado e segui o meu caminho.
O inverno castiga o morador de rua, principalmente as mães e consequentemente os seus filhos.
Nunca vou me esquecer uma certa manhã de segunda-feira por volta das 7:10 indo pro trabalho no ônibus Apiacás - Centro. O transporte coletivo lotadíssimo mas eu sentada pois pegava o mesmo no ponto final. Sorte a minha! É nada agradável levar uma bolsada, ser esmagada por uma mochila escolar ou ter sua meia calça desfiada por um punk cujas calças são enfeitadas com tachinhas que rasgam tudo ao mais leve tocar ou esfregar. Nenhuma mulher merece!
Na parada em frente ao Cemitério da Consolação o mal cheiro avisa a chegada de mais uma passageira: uma jovem com toda pinta de moradora de rua. Aparenta estar envergonhada e só depois de dois pontos ela se manifesta: "Bom dia todo mundo! Não posso dizer que o meu dia começou bem por que nem dormi direito. Com aquele frio todo e meu filho sem ter leite ... (ela dá uma respirada) ... é, tá fogo. Por isso que estou aqui. Já é o terceiro ônibus que tomo por que não consegui o dinheiro pra comprar leite pro o meu filho e os dois da minha amiga que tá cuidando do meu menino agora. Se puder ajudar, fico grata." E nisso a jovem começou o seu calvário naquele corredor que mais parecia uma lata de sardinhas. Obviamente que alguns passageiros estavam mais preocupados em esquivar daquela andarilha para que suas roupas não tocassem nas delas. Imagine só se a mão dela ou a perna esbarrasse num deles? Seria uma paranoia coletiva. Chegando na catraca ela deu um passe ao cobrador que no mesmo instante devolveu dizendo, "Se quiser, pode passar por baixo." Ela agradeceu e deslizou por baixo da catraca com a maior facilidade. Alguns passageiros falaram bem alto, "É! Deixa o chefe ficar sabendo que o cobrador deixa mendigo passar por baixo!" O cobrador ficou na dele mas o motorista parou o ônibus e soltou a verba, "Quando eu paro o meu ônibus e um pobre coitado sobe é por que eu deixei e o meu colega sabe muito bem o que tá fazendo, viu! A gente sabe quem é quem nessa linha. A gente pode não ter muito estudo mas a gente reconhece quem é quem e não é pela roupa não! É pela educação! Pela maneira de cumprimentar ou não cumprimentar logo de manhã cedo. Portanto, cada um cuida do seu nariz, ok?" E assim prosseguimos a nossa viagem ao Centro.
As mãos da moça exibiam uma única moeda que nem dava pra comprar um pacote daquela pipoca doce bem da sem vergonha! Imagine lá um litro de leite! Chegando perto do meu banco ouvi a passageira do meu lado dizer bem nítidamente e alto, "Nossa! Que cheiro de pinga!" Todos olharam para a moça pedente inclusive eu. Não sei como os outros a olharam mas eu a vi com os meus próprios olhos. Olhos de quem dormiu que nem uma rainha coberta por dois edredons e uma manta. Tentei pintar um quadro na minha cabeça daquela moça acalantado o seu filho pequeno naquela noite gelada. Sem dúvida alguma ela tomou seus goles de pinga de uma garrafa comunitária que passou de mão em mão. Só mesmo alguma bebida alcoólica para espantar um frio daqueles da noite anterior. Como resistir à única solução capaz de minimizar o seu dilema aquela hora da noite?
Abri a minha bolsa e peguei o porta-moedas. Dei uma olhada e vi que não daria para muita coisa. Peguei minha carteira e retirei uma nota de dez reais e aguardei a moça aproximar.
Quando ela já se encontrava bem do meu lado esquerdo falei, "Aqui moça. Só uma coisa antes, por favor." E ela pegou a nota e disse, "Pode falar dona."
Olhei bem firme no seu rosto e ela me devolveu o mesmo olhar. Desabafei, "Olha, quando você descer desse ônibus vai direto à padaria e compra o leite do seu filho e das outras crianças. Espero que você tenha juízo ao usar o troco e que não precisa tomar pinga esta noite por que pinga não é bom pra ninguém. Eu não tenho como saber se você vai realmente comprar o leite mas Deus sabe. Ele vê tudo! Se você precisar de ajuda, procure o Padre Romano lá na Igreja da Consolação. Ele sempre ajuda quem precisa e lá tem onde você pode tomar banho, cortar o cabelo, cuidar do seu filho direitinho, tirar documentos e se alimentar. Procure pelo Padre Romano, tá?" Acho que foi melhor dizer aquilo do que desejar 'Boa Sorte'.
A moça sorriu, agradeceu e prometeu ir até a Igreja da Consolação que ficava bem pertinho do ponto onde ela desceu.
Uma senhora me fitou e disse, "Ela te fez de otária, sabia?" Eu simplesmente respondi, "Pode ser mas o meu coração diz que fiz o certo. Deus tá vendo que fiz a minha parte. Nunca tive que dormir na rua, tão pouco consigo imaginar o frio que fez ontem à noite, nem quero sentir. Mas com certeza se eu sentisse, tomaria cachaça pra me esquentar por que na certa não teria nenhuma manta para me aquecer." Não ouvi mais nenhum gracejo, nem comentário maldoso. Em menos de cinco minutos já estávamos na frente da Biblioteca Mário de Andrade e eu quase em frente do prédio onde eu trabalhava.
Mas, a vida também conspira oferecendo momentos especiais de puro prazer!
Luxo foi ter ouvido Edson Cordeiro no início da carreira cantando ao ar livre na Rua 24 de Maio com a Avenida Ipiranga no frio, no calor, debaixo de chuva, no sol ... nas quatro estações por uns dois anos. Com o maior prazer dei a minha parte do cachê de cada espetáculo que assisti. Aquela voz me fez sentir sublime e me deixava em ponto de bala para enfrentar a tarde repleta de aulas. Até hoje ouço Edson Cordeiro quando quero sentir 'renovada'. Basta colocar um dos CDs dele que tenho. Solto a minha voz e faço meu dueto com o Edson! Graças a Deus que vivemos numa democracia e ainda podemos fazer o que bem entendemos entre quatro paredes! ;-)
Também tive o prazer de ouvir o menino Charles da Flauta tocar em frente do Mappin bem pertinho do Teatro Municipal. Era simplesmente divino caminhar pelo Centro e ouvir aquele menino encher o espaço todo com o seu chorinho naquela flauta mágica! O Centro de Sampa parava para ouvir aquela minatura do Altamiro Carrilho colorir o som de verde e amarelo toda vez que tocava 'Aquarela do Brasil'!
Um certo dia, após muitas aulas e quatro ônibus entre minha casa, o Centro e Santo Amaro, estava eu finalmente a caminho de casa quando o ônibus parou em frente ao Hospital das Clínicas na Avenida Dr. Arnaldo e um homem jovem bem-apanhado trajando camiseta branca, jeans e aproximadamente 30 anos de idade subiu com o seu violão, pediu licença ao motorista e passageiros e resumiu o por quê dele estar ali naquele momento.
Aquele homem não teve vergonha nenhuma em contar o seu sonho maior que era correr no 'New York City´s Marathon' no ano seguinte mas como conseguir o dinheiro para sua passagem e hospedagem? 'The Big Apple' não ficava logo ali não. O seu salário era pequeno demais e mal proporcionava o básico para sobreviver com dignidade e ainda ajudar seus pais. Não tinha condições nenhuma para manter aquele esporte portanto, o único jeito era pedir ajuda aos passageiros dos ônibus no caminho para o trabalho e depois de volta pra casa após o expediente de cada dia. Depois disso era treinar, treinar e mais treinar até se cansar.
Ele se lembrou de falar dos inúmeros pares de tênis que o maratonista precisava comprar não só pra treinar mas também pra correr pra valer nas maratonas.
Aquilo me fez lembrar a minha aluna Tereza, cujo irmão corria maratonas pelo mundo inteiro. Eram três pares de tênis que o irmão caçula consumia a cada mês! Graças a Deus ele ganhava bem e que seus familiares e amigos mais chegados o presenteava com tênis de marca para treinar. Ela me contou que ele adorava ganhar tênis mas mesmo assim vivia comprando tênis por que nunca tinha o suficiente por que a sola gastava à toa. Ele corria pro trabalho e de volta além de correr nos fins de semana. Haja tênis!
O busker (artista de rua em inglês) deixou claro que não queria esmola, queria apenas uma contribuição em troca da canção que iria nos oferecer. Não havia valor estipulado. Cada um dava o que podia. E quem não podia? Ele disse, "Lembra de mim na hora que estiver orando, tá bom!?"
Nisso, ele pegou o seu violão Di Giorgio e começou a dedilhar. Hummmm ... parecia que tocava ... parecia não! Era sim, 'Prelúdio Pra Ninar Gente Grande'!!! Ou mais conhecida como 'Menino Passarinho' do grande Luiz Vieira! Eu morava em New Jersey, USA (1962) e tinha apenas um ano quando essa canção estourou de norte ao sul do Brasil mas foi lá nos EUA que ela me ninou infinitas noites na voz do seu criador Luiz Vieira com o meu Pai fazendo backing vocals. Até hoje esta canção é uma das prediletas do meu Pai e minha também! Como não colaborar com esse moço? Ele dava um verdadeiro show de talento e carisma naquele fim de tarde cujo sol mergulhava no horizonte daquele céu do alto do Sumaré já pertinho da Igreja Nossa Senhora de Fátima. O canto daquele corredor de maratona pulsava com tamanha força e seus dedos deslisavam nas cordas daquela guitarra de tal forma que comoveu a todos naquele ônibus e por alguns minutos eu juro que vi um menino passarinho se revelando e a sua tremenda vontade de voar!
Querendo ouvir 'Prelúdio Para Gente Grande Dormir' basta colar e visitar >>> http://letras.mus.br/luis-vieira/715923