Cuidado Com O Que Você Pede
Somos apresentados à certas pessoas que de alguma forma ou outra acabam acrescentando algo às nossas vidas.
No dia que o meu casamento acabou me lembrei da Iracema e pensei comigo, "Poderia ter sido pior."
A Iracema estava voltando a dar aulas por 'hobby' apesar de não precisar da graninha extra. Ela apenas não queria ficar mofando em casa na frente da TV tricotando ou se entupir de brownies. O próprio dono da escola ligou implorando que voltasse por que não tinha professores suficientes e competentes. Então, a Iracema voltou.
Somos apresentados à certas pessoas que de alguma forma ou outra acabam acrescentando algo às nossas vidas.
No dia que o meu casamento acabou me lembrei da Iracema e pensei comigo, "Poderia ter sido pior."
A Iracema estava voltando a dar aulas por 'hobby' apesar de não precisar da graninha extra. Ela apenas não queria ficar mofando em casa na frente da TV tricotando ou se entupir de brownies. O próprio dono da escola ligou implorando que voltasse por que não tinha professores suficientes e competentes. Então, a Iracema voltou.
Quem levava a Iracema à escola era o seu marido, o Seu Celso. Toda terça e quinta ele estacionava o carro na Praça da República por volta das 13:00 e aguardava a saída da esposa. Enquanto Iracema dava suas três aulas, ele ficava no carro ouvindo música, lendo o jornal ou dava uma caminhada pela praça e fumava. Por volta das 15:30 ele ia buscar algum doce na Confeitaria Dulca na Vieira de Carvalho. A Iracema nunca pediu que fizesse isso mas ele mimava ela, eu e as secretárias com bolos, docinhos e biscoitinhos e sempre trazia o embrulho com aquele largo sorriso no rosto. Ele nunca permanecia dentro da escola. Era só entregar as guloseimas e logo se despedia dizendo que estaria lá fora, " ... esperando por você minha querida."
O que me deixava louca da vida era o jeito da Iracema tratar aquele homem. Ela agia indiferente ao carinho do marido. Quando os dois despediam ela nunca retribuía com um beijo, nem mesmo um miserável beijinho. Apenas dizia, "Te vejo logo mais. Agora vai, Celso. Vai!"
Uma quinta-feira à tarde, quando São Pedro resolveu castigar a cidade de São Paulo com um temporal daqueles, a Iracema e eu estávamos na sala dos professores aguardando nossos alunos quando após vinte minutos a Iracema manifestou, "É Patricia, acho que ninguém vai aparecer por aqui hoje. Só nós mesmas." Com uma xícara de café fresquinho nas mãos a Iracema e eu fomos pra janela que dava pra Praça da República. Sentamos e olhávamos pra praça e a Avenida Ipiranga coberta de guarda-chuvas. Vi o carro do Seu Celso lá longe e falei, "Coitado do seu marido, Iracema. Lá no carro sozinho com essa chuva toda desabando e passando frio." Ela apenas deu uma risadinha e disse, "Ah sim! Tadinho dele! Nem imagina o quanto tenho peninha dele!" Percebi uma certa ironia naquele voz dela que geralmente soava a doçura mas achei melhor não questionar, afinal de contas quem sou eu pra palpitar sobre o marido alheio.
Quando bateu 15:30 o marido da Iracema apareceu com um embrulho da Dulca. Entregou os doces à Iracema que agradeceu e disse, "Agora vai. Logo mais você vem pegar minhas coisas e a gente vai pra casa, tá bom?" Aquele homem apenas fez que sim com a cabeça, deu uma bitoquinha na bochecha da Iracema, retirou-se da sala dos professores e voltou pro carro lá na praça.
Mais uma vez a Iracema me surpreendeu com a sua frieza. Não me contive e falei meia assim indignada, "Pôxa Iracema! Que marido bom que você tem. Nem um selinho ele ganha?" A Iracema me deu uma olhada daquelas que é de matar mas eu ainda retruquei dizendo, "Me dera ter um marido tão bonzinho quanto o Seu Celso algum dia!" A Iracema olhou bem pra mim e disse, "Se eu te contar a minha estória ..." e eu então pedi, "Conta Iracema. Estamos sem aula e com todo tempo do mundo agora." A Iracema encheu sua xícara de café, sentou-se e disse, "Patricia, cuidado com o que você pede minha querida. Pode ser que você seja atendida e aí não tem volta." E a Iracema começou a contar a sua estória.
"Uma quinta-feira à tarde, por volta das 17 horas, o meu filho mais novo chegou da escola um pouco antes das irmãs. Quando elas chegaram encontraram o irmão sentado no meio fio com a cabeça entre as pernas e chorando alto. Suas mãos estavam enterradas nos cabelos e lágrimas corriam pelo rosto do meu menino. As irmãs aproximaram e viram o irmão aos prantos. Perguntaram o que havia acontecido e ele chorando falou, 'Roubaram a nossa casa! Levaram tudo! Tudo!' As meninas foram até a casa e puderam ver com seus próprios olhos a nossa sala vazia. Havia nada lá, nadinha. Foram até a cozinha e viram nada também. Estavam em estado de choque mas mesmo assim voltaram pra rua, cada uma sentou do lado do irmão, se abraçaram e choraram juntos. Passou bem uns trinta minutos e eu cheguei. Ao aproximar da minha casa, notei uma rodinha de pessoas em frente da minha casa e uma das vizinhas agachada conversando com os meus filhos. Minha cabeça começou a girar mas mesmo assim corri, me atirei no chão e gritei, 'O que houve crianças? O que houve?' O meu filho berrava, 'Mãe! Mãe! Roubaram a nossa casa! Vai lá! Vê o que fizeram Mãe! Tem nada! Nada!' As meninas soluçavam e se agarraram a mim. Confortei os meus filhos por alguns minutos. Falei que tudo ficaria bem mas continuavam a chorar e falaram, 'Como mãe? A gente não tem nada!' Fechei os olhos e pedi a Deus que mandasse o meu marido logo pra casa. Não conseguia raciocinar. Me levantei e fui confirmar o que as crianças já tinham constatado. A sala vazia. Nada foi deixado para trás. Nada! A cozinha totalmente pelada. Só mesmo os os pregos fincados nas paredes poderiam contar a estória. Subi as escadas e o mesmo cenário se repetia. Os quartos não tinham nenhum móvel, nenhum quadro ... apenas as sombras nas paredes dos nossos quadros, nossas memórias que se foram! O que eu queria mesmo era berrar! Queria chorar mas precisava me segurar se não ... não sei o que poderia acontecer aos meus filhos. Desci as escadas vagarosamente e ao chegar no último degrau me lembrei do último Natal e como a nossa sala estava repleta de presentes ao redor da linda árvore toda enfeitada. Difícil acreditar que alguém pudesse ser tão cruel e levar tudo de dentro da nossa casa. Segurando as lágrimas fui caminhando até a porta da rua quando parei, olhei para minha vizinha perguntei, 'Sílvia, você fica em casa o dia todo. Será que você viu alguma coisa? Alguém?' Nisso, a Sílvia toma a minha mão e me leva pro cantinho do jardim e murmura, 'Cema, só foi você sair com as crianças que o Celso chegou de carro e logo atrás veio um caminhão que encostou na frente da sua casa. Dois homens saíram, foram até o carro e conversaram com o seu marido. Ele mesmo abriu a porta da frente para os homens que logo foram retirando tudo. Seu marido entrou e trazia objetos menores que colocava dentro do carro. Antes do meio dia haviam tirado tudo! Pensei que vocês estavam mudando sem contar a ninguém!'
Não! O meu marido? O meu Celso? O pai dos meus filhos? Ah não! Pedi pra minha vizinha não comentar nada por enquanto. Eu precisava tirar isso tudo a limpo e rápido. Decidi esperar o Celso chegar em casa ... isso é, se ele voltasse.
Meu filho falava como se fosse uma prece, "Quando o papai chegar, ele resolve tudo, né mamãe?" Olhei pro rostinho do meu filho de onze anos e respondi, "Claro meu amor. O papai vai saber o que fazer. Ele sempre sabe."
Talvez esse fosse o problema: O Celso sempre sabia o que fazer. Nunca tive que me preocupar. Tudo era ele quem resolvia. Ele decidia tudo e eu fui me acomodando. Eu gostava de não ter que lidar com certos assuntos e pessoas e o Celso me poupava de tudo ... sempre.
E agora? Aquele homem que não chegava para acalantar seus filhos. O que será que houve?
Esperamos até às 20 horas dentro daquela sala vazia. Umas duas horas antes levei as crianças até a padaria da esquina pensando que um lanche pudesse nos animar um pouco mas de nada serviu. As meninas não comeram nada, nem o meu menino deu uma mordida no seu pão na chapa que tanto adorava. Tomaram uns golinhos do chocolate quente e só. Me entupi de café preto e ponderava sobre o paradeiro do meu marido.
Resolvi ir à casa dos meus pais. Fui ensaiando o discurso que teria que fazer afinal, como vou aparecer na casa dos meus pais ás 21 horas com os meus três filhos à tiracolo e pedir arrego? E ainda por cima sem o meu marido. Quando lembro dessa situação toda Patricia eu não consigo pensar em nenhuma novela mexicana com drama maior que o meu.
Ao abrir a porta, o meu pai olhou meio que surpreso, meio que chocado e disse, "O que houve com vocês pra estarem na rua a esta hora minha filha?"
Quando pensei em abrir a minha boca o meu filho foi mais rápido. "Vô! Roubaram tudo! Levaram tudo da nossa casa, Vô!" O meu pai arregalou seus olhos. Só lhe restava uma coisa a fazer: nos acolher naquele seu abraço bem forte. Não sei como mas ele conseguiu abraçar bem forte nós quatro juntos e repetia inúmeras vezes, "Não se preocupem meus filhos! O Vô tá aqui! Vou dar um jeito em tudo! Não se preocupem!" E no meu ouvido ele sussurrou, "O pai tá aqui Ceminha. O teu pai tá aqui!"
A minha mãe apareceu na entrada da casa e juntou se ao nosso abraço e disse, "Muita calma meus filhos! Tudo tem solução menos a morte." Naquele momento desabei. Fui amparada pelo meu pai que me deitou no sofá. Apaguei. Só fui acordar no dia seguinte às 8 já atrasada para o trabalho.
Vi a minha mãe do meu lado e ela logo me informou, "Já liguei para o seu chefe. Disse que você estava passando muito mal e que poderia estar com uma virose. Ele falou que é pra você se cuidar direitinho. Se não sentir melhor amanhã, é pra ficar em casa." Ahhh minha mãe, minha mãe! Sempre sábia e prestativa na hora certa.
As crianças também ficaram de molho na casa dos avós. Todos ao redor da mesa tomando o café da manhã que a D. Marina havia preparado. Notei a falta do meu pai e logo fui perguntando. Mamãe respondeu que ele havia saído para tratar de alguns assunto e que logo estaria em casa conosco.
Nenhuma vez a mamãe me interrogou sobre o ocorrido. Nem mesmo pelo Celso ela perguntou. Ela simplesmente nos distraiu com seu bom papo e estórias. As crianças já não estavam tão tensas e eu felizmente consegui achar um pedacinho de chão onde pudesse pisar sem medo e respirar aliviada.
O meu pai voltou e logo foi anunciando que iríamos ao Centro. Nos informou que faríamos compras por que todos estavam sem roupas, sapatos, etc. As crianças e a mamãe foram se arrumar. O meu pai se aproximou e disse, "Já sei de tudo Cema. Vamos às compras e lhe conto tudo de pouquinho em pouquinho. Tá bom assim minha filha?" Fiz que sim com a cabeça e sem querer lágrimas brotaram dos meus olhos. Papai me beijou a testa e disse, "Tudo vai dar certo Ceminha! O papai vai cuidar de tudo! Agora, vamos às compras! Mulher adora gastar dinheiro em roupas, não é mesmo minha filha?! E veja só, eu tenho quatro pra me levar a falência hoje!" Papai deu aquela risada gostosa e eu só pude parar de chorar por que sabia que nada poderia dar errado com o meu pai do meu lado.
Papai contou toda a estória em doses homeopáticas e mesmo assim não consegui engolir toda aquela informação sórdida.
Meu pai foi lá na minha rua e vasculhou cada canto, interrogou cada vizinho, passou nos bares, na banca de jornal, no bicheiro e foi juntando as peças daquele quebra-cabeça. Descobriu que o Celso havia nos trocado por uma serigaita de quinta categoria. Ah! O meu mundo literalmente caiu! Desmoronou! Mas procurei manter a fachada por causa dos meus filhos. Fiquei firme e forte durante aquele passeio ao Centro. As crianças não perceberam que eu havia colocado uma máscara mas a mamãe me dava aquele olhar triste que me deixava tremula e nervosa. Ainda bem que as crianças faziam aquela algazarra toda e acabavam nos distraindo. Meu pai me abraçou e cochichou ao pé do meu ouvido, "Ceminha, minha filha, o que não mata a gente só nos fortalece, certo?" Respondi com um sorriso nada Colgate. Melhor do que fazer um berreiro e estragar o nosso passeio.
Meu pai descobriu onde o Celso estava escondido mas pedi para não se incomodar por que contrataria um advogado o mais rápido possível para resolver os detalhes. O pior de tudo era contar aos meus filhos essa estória do canalha do Celso. Não tinha dúvida que eu teria que contar antes que ouvissem as fofocas, bochichos e sei lá mais o que e resolvi contar no fim do dia seguinte depois de contratar um advogado e pedir um pequeno empréstimo no banco para recomeçar a nossa vida sem o Celso.
Acordei cedinho e ajudei a minha mãe preparar o café da manhã. As crianças foram à aula normalmente e eu dei uma passada lá no trabalho. Falei com o meu chefe sobre o ocorrido e pedi desculpas pela mentira da minha mãe. Ele respondeu que compreendia muito bem o porquê. Ainda sugeriu que eu fizesse o empréstimo pela cooperativa da nossa empresa e que também pedisse ajuda ao pessoal do departamento jurídico. Respondi que estava totalmente constrangida com o ocorrido e que nem sabia como encontrei a coragem em me abrir assim com ele. O meu chefe apenas respondeu que quem deveria estar constrangido era o cara de pau do Celso. Ele me elogiou muito e aquilo realmente deu uma alavancada no meu ego. Estava precisando disso para não sentir que a culpa era toda minha pelo Celso ter nos abandonado daquele jeito.
Com uma tacada só resolvi dois assuntos: o empréstimo e o advogado. Meu chefe me liberou naquele dia e ainda cedeu o seu motorista particular, Seu Joaquim, um senhor muito discreto. Antes de ir para casa dos meus pais passei no Mappin e comprei um fogão, geladeira e TV. Tudo em suaves prestações. Dei o endereço da minha casa e pedi que a entrega fosse feita com certa urgência. O vendedor pediu que aguardasse um momento que ele daria uma checada na escala de entrega. Ele voltou logo e disse que só daí três dias. Olhei pra ele e resumidamente contei o meu dramalhão mexicano. Ele se comoveu e voltou pro escritório para fazer algumas alterações na agenda de entregas. Ao retornar perguntou se poderia entregar tudo na manhã seguinte após ás nove. Sorri e disse que sim. É, eu já não estava tão no fundo do poço. As coisas pareciam se ajeitar e o vento ao meu favor. Por que não ousar? Sim! Queria ousar e era justamente o que pretendia fazer agora! Como Elvis canta, "It´s now or never!" e lá fui eu.
O Seu Joaquim sabia o caminho e em meia hora estávamos lá no Alto da Vila Madalena. Uma casinha humilde que provavelmente não via a cor de tinta a anos. No caminho, combinei com o Seu Joaquim o que faríamos. Ele desceu do carro, tocou a campainha e aguardou. Apareceu uma menina adolescente descabelada que logo perguntou o que ele queria. O Seu Joaquim perguntou pela dona da casa. A menina entrou e em seguida saiu uma mulher jovem com um bebê de quase um ano no colo. O meu coração quase saiu pela boca! A dona da casa aproximou e perguntou do que se tratava. O Seu Joaquim disse que a Senhora Iracema estava no carro aguardando o retorno dos pertences dela. Os olhos dela dobraram de tamanho e ela voltou pra dentro de casa mas logo saiu sem o bebê. O Seu Joaquim sutilmente perguntou, "Então, a senhora vai buscar os pertences ou tenho que chamar a polícia?" A mulher respondeu que teríamos que esperar o homem dela chegar mas o Seu Joaquim foi firme, "Não temos tempo a perder, senhora. É já ou chamamos a polícia. Decida logo." A mulher balbuciou que poderíamos entrar. Seu Joaquim deu o sinal e saí do carro. Pedi licença e entrei naquele casebre. Haviam caixas e mais caixas tomando conta de cada cantinho daquela casa. Seu Joaquim se dirigiu a mim e disse, "Não vamos conseguir levar tudo D. Iracema. Escolha algumas coisas e depois voltamos." Eu não queria voltar àquela casa. Uma vez já havia sido o suficiente. Acho que o Seu Joaquim conseguiu ver o constrangimento e a vergonha na expressão do meu rosto e logo me confortou dizendo, "Acabo de lembrar de um amigo que me deve alguns favores. Ele tem uma Kombi e quem sabe pode ajudar a gente levar tudo numa viagem só." Enquanto o Seu Joaquim foi procurar um orelhão, eu separava as caixas com as roupas das crianças e as minhas. Ele voltou rapidinho e disse que o tal amigo estava a caminho. Que sorte a minha! O poço já não era tão fundo.
Separamos algumas caixas com coisas da minha cozinha e fucei até encontrar os meus álbuns de fotografias. Garimpei pela minha caixa de joias e a achei intacta junto com a roupa de cama. Peguei o meu tesouro e deixei a roupa de cama como brinde pra aquela infeliz.
Parecia que tinha pego tudo que tinha valor sentimental quando Seu Joaquim perguntou se era tudo. Disse que sim. Não fazia questão de levar muitas coisas nem mesmo um móvel. Não sabia ao certo quando teria a minha casa toda mobiliada novamente mas não queria levar fantasmas pra lá. Era a última coisa que eu queria nesse mundo.
Durante todo aquele tempo que mexíamos e separávamos as caixas, aquela mulher não me dirigiu uma só palavra, e nem eu à ela. O tal homem não apareceu e quando a tal Kombi chegou, o Seu Joaquim e o amigo que lhe devia alguns favores foram logo colocando as caixas pra dentro da Kombi. Não me deixaram levantar nem se quer uma caixa. Apenas observava os dois homens quando aquela mulher aproximou e me disse, "Eu reparei na tua cara quando me viu com meu filho no colo. Mas pode ficar sossegada por que ele não é filho do Celso, viu. É de outro mas o Celso assumiu. Registrou e tudo. Mas não é dele não." Se ela tivesse dito aquilo na noite do pesadelo, com certeza teria estraçalhado aquela infeliz mas naquele momento só senti pena dela e respondi, "Agora não importa mas nada. Celso virou história. Página virada. Apenas diga a ele que o meu advogado vai procura-lo." Dei as costas e fui em direção ao carro esperar o Seu Joaquim me levar embora pra minha casa na Freguesia do Ó."
Iracema me fitou com seus olhos meio que lacriminosos e disse, "Como vê minha linda, o Seu Celso não é tão um tadinho assim."
Fiquei de queixo caído! Aquele senhorzinho tão bonzinho! Todo dedicado! Minha nossa Senhora! Que dramalhão esse da Iracema!
"Ficamos separados por quinze anos. Ele deixou aquela mulher após um ano e pouco por que ela não cozinhava, nem lavava e muito menos trabalhava fora. Foi morar só num kitchenette na Lapa perto do Mercado Municipal onde vimos ele um dia enquanto fazíamos a nossa feirinha de sábado. As crianças reconheceram o pai mas não o cumprimentaram. Ele sim deu um sorriso e um olá mas viu que não ganharia nada em troca. Seguimos o nosso caminho e o Seu Celso o dele até que um dia o Hospital da Lapa me ligou dizendo que o Celso estava precisando de cuidados especiais por que estava com câncer e tinha pouco tempo de vida. Sentei com os meus filhos e comuniquei o fato. Nenhum se manifestou a favor do pai, nem mesmo o meu caçula. Os três falaram que ele procurou portanto teria que aguentar as consequências. Mas eu com esse meu coração mole resolvi cuidar dele. Meus filhos já estavam casados e eu morava sozinha naquela mesma casa que ele tinha deixado. Não gostaram da minha decisão mas me respeitaram e eu fui busca-lo no hospital no dia seguinte.
Como vê querida, o Seu Celso tá vivinho. Ele superou aquele câncer e eu fiquei com pena em mandá-lo embora. Dormimos em quartos separados e não temos intimidade nenhuma a não ser aqueles beijinhos que ele insiste em mim dar. Cuido dele e em troca ele cuida da casa, do jardim e me carrega pra lá e pra cá no meu carro que ganhei do meu filho pra facilitar a minha vidinha. Quando fico adoentada ele cuida de mim com muito carinho e mimos mas não deixo a emoção me dominar, nem por um só segundo. Os nossos filhos tratam-no bem dentro do possível. O trauma que o caçula sofreu nunca foi superado. Meu filho tem lá os demônios dele que procura entender e resolver com uma psicóloga. As meninas são até meigas e carinhosas com o pai mas vejo a mágoa nos olhos delas. A verdade é que Deus é Pai, não padrasto. O Celso se realiza com os netos. Temos cinco e todos adoram aquele filho da puta! Como avô ele se saiu muitíssimo bem. Não podemos reclamar de nadinha por que o Celso faz de tudo pra agradar os netos. Faz pipa, empina pipa, brinca de boneca, pula corda, brinca de fazer chá das cinco com a Rainha, já fez balanço e casa na árvore ... é só a criançada pensar que o Vô Celso faz. Quem vê pensa mesmo que o Celso é um santo homem."
Ninguém apareceu pra aula e a chuva não deu trégua. Vi o Seu Celso atravessando a praça a caminho da escola com seu enorme guarda-chuva para buscar a sua esposa.
A Iracema se despediu deixando beijinhos cor de rosa carimbados nas bochechas dos colegas. Desejou um bom fim de semana a todos nós e se foi.
Fui dar aquela espiadinha da janela e vi que a minha querida amiga não era toda durona como aparentava ser. O Seu Celso segurava firme naquele guarda-chuva de cor verde bandeira que o vento insistia em arrancar da sua mão esquerda enquanto a direita embalava a mão da sua maior joia: Iracema.
É, a vida da voltas de 180° e as vezes de 360°! Eu particularmente vou dar um "One Eighty". Não quero reprise. Se quiser, dou aquela ligadinha na Globo e me acabo na 'Sessão da Tarde'! K K K K K