O bilhete

Você agora está sentado no sofá da sala, olhando para a parede coberta de quadros comprados na feira hippie aos domingos. No seu quarto, o descanso de tela do computador esconde o bilhete que você escreveu há cerca de uma hora, quando decidiu fazer o que já deveria ter feito há muito tempo.

Mas você não fez. Está aí parado, pensando, refletindo sobre o futuro, indeciso, com esse olhar de peixe morto que é o seu sinal – a sua marca registrada.

No entanto, o bilhete é muito claro, direto, sem titubeios. Por que não fez, então? Está esperando o quê? Outra oportunidade? Um milagre?

Quando você se sentou na frente do computador, há uma hora e tal, percebi que havia algo de novo no ar, uma energia que eu não sentia há muito tempo nesta casa – um misto de coragem, determinação e força –, como se você realmente estivesse disposto a encarar o abismo, a se entregar de vez, sem medo.

Mas vejo que não, pois você continua aí, imóvel, olhando para a parede.

Quem sabe uma dose de conhaque ajude? É isso! Tome um conhaque. Ou uma cachacinha especial, daquela que seu sogro te deu de presente há dois anos, quando você foi visitá-lo para pedir dinheiro emprestado e ele negou. Meio copo de cachaça talvez lhe devolva a coragem...

O quê? Você vai se levantar? ...

Isso, garoto. Levante-se e termine o que começou. Faça valer a sua vontade.

Caminhando lentamente, mas resoluto, você vai ao quarto e imprime o bilhete. Seu olhar já não é mais de peixe morto. Com as duas mãos você segura o papel diante dos olhos e lê em voz alta:

"Amor, hoje é o último dia das minhas férias, mas amanhã não vou trabalhar. Vou agora mesmo me demitir. Não aguento mais aquela vida. Não nasci para ser gerente de banco. Tenho outros sonhos, você sabe... Vou investir neles. É o que eu quero, de verdade. Conto com o seu apoio. Peço desculpas por não te esperar. Tem que ser agora. Quando você ler este bilhete, já estará feito. Eu te amo."

Ela vai te apoiar, você sabe disso. Ela te ama, apesar de tudo. Mesmo grávida do seu segundo filho, com todos os riscos embutidos nessa sua decisão, ela vai te apoiar. Ela sabe que boa parte dos seus 37 anos de vida foi gasta agradando pai, mãe, tios, primos e amigos, menos você; que ser bancário não foi escolha sua; que você vive atormentado, angustiado, mal-humorado, sem dormir, pensando em suicídio quase todos os dias da semana – tudo por causa daquele maldito banco! Ela sabe disso. E vai te apoiar.

Agora, faça-me um favor: vá lá e mande aquele filho da puta do seu patrão para o inferno de uma vez por todas.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 13/09/2013
Código do texto: T4480308
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