Sim, Quero-Quero, Te Quero Vivo!
Um sol agradável numa tarde de agosto, na Praia do Araçá em Ilha Comprida, Litoral Sul de São Paulo. Sentei-me na areia, a espreitar ondas, nuvens, pássaros... As espumas nas águas pareciam-se com as de champanhe; o mar brindava a terra, em cada onda que chegava à costa. As águas geladas, típicas dessa época do ano, não instigavam mergulhos. Nessas ocasiões é adorável contemplar a natureza, senti-la de perto.
Quero-Queros, Gaivotas... Pássaros lindos, em seu habitat natural. Eu estava só, num raio de mais de um quilômetro. Fiquei imóvel por algum tempo, aos poucos os pássaros estavam cada vez mais próximos - não se incomodavam com a minha presença. Soprava um vento frio de sudeste enquanto o sol me aquecia. O barulho do mar ajudava-me a ter uma sensação de sonolência. Invadia-me um início de sono; meio-acordado, quase dormindo - a meio do caminho dos sonhos. Deite-me na areia e algumas nuvens mostravam-se como um acolchoado. Olhei para o céu. Os raios do sol provocavam calor entre o meu corpo e o acolchoado das nuvens. Integrado. Essa impressão me tomou por inteiro, remetendo-me a uma experiência linda.
Um Quero-Quero piava insistentemente, enquanto corria de lá pra cá a minha frente. Não podia compreender... O que este bicho quer? Continuei imóvel, pacientemente observando. Levantei então algumas suspeitas. Será que me sentei sobre algum ninho? É, alguns pássaros destas praias tem ninhos sobre as vegetações rasteiras nestas dunas aqui próximas. Não, estou afastado das dunas. O que será? Será que tem algum alimento embaixo de onde estou? Não, estou um pouco além do trecho em que a água se espraia, e é lá que eles pegam suas presas. Aos poucos seus chilreios não formulavam mais perguntas. Tudo bem... Se ele quer ficar piando, esteja à vontade. No que me desprendi do seu barulho e de sua excitação de frenéticos zigue-zagues, aumentou aquela sensação de torpor – profunda sonolência...
— Moço, moço, moço!
Uma voz fina, lindamente aguda. De onde vem? Olhei, com aquela lentidão dos quase-adormecidos. Não vi ninguém.
— Ei, sou eu, aqui a sua frente. Olha, queria te fa...
Quando olhei para o Quero-Quero, tentando entendê-lo, apenas ouvi seu som característico. O final da frase já não compreendi. Achei que estava sonhando acordado. Fitei as nuvens e senti novamente o calor do sol...
Outra vez ouvia-o, a meu modo, no que talvez fosse o início de um diálogo, desses existentes só em nossas consciências. Entreguei-me àquele sentimento e me permiti ouvi-lo.
— Ô moço, fique quietinho assim, como estava. Com teu coração – e somente com ele – poderá me escutar. Olha, sou apenas um Quero-Quero, como assim me chamam por aqui. Existo em várias partes do mundo, em diversos formatos e tamanhos. Sou também a vida que está em você. Somos a mesma coisa, eu e você... Simplesmente somos a Vida. Somos o mar, a terra, aquela espuma... E, até aquelas dunas, também somos nós. A Vida se manifesta em todas as formas e sou apenas uma delas. Vim te falar do quanto preciso das dunas. É um pedido sim, além de uma queixa... Hoje à noite, na madrugada, aquecia meus ovos, em meu ninho nas dunas. A vegetação rasteira das dunas é excelente para mantê-los. Sabe o que aconteceu? Vieram máquinas e removeram-na, destruindo toda a minha família... Não é a primeira vez. Observou como as dunas estão diminuindo? A cada dia, mais e mais dunas desaparecem...
Ele parou um pouco, como se respirasse. Suas palavras eram rápidas, talvez em razão do desespero pela perda da família. Pareceu-me também que organizava seus pensamentos. Logo continuou:
— Vocês têm uma carta maravilhosa na ONU. Os governantes deste país ratificaram-na, tornando-a válida em seu território, não é? Gostaria de lembrá-la, para avivar tua memória. No preâmbulo da Carta da Terra, no parágrafo Terra, Nosso Lar, consta: “A humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A Terra, nosso lar, está viva com uma comunidade de vida única. As forças da natureza fazem da existência uma aventura exigente e incerta, mas a Terra providenciou as condições essenciais para a evolução da vida. A capacidade de recuperação da comunidade da vida e o bem-estar da humanidade dependem da preservação de uma biosfera saudável com todos seus sistemas ecológicos, uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo. O meio ambiente global com seus recursos finitos é uma preocupação comum de todas as pessoas. A proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um dever sagrado.”
Com a maré subindo, a água fria encontrou meus pés e tirou-me daquele torpor. Fiquei sem saber se dormi e sonhei com este diálogo, ou se foi minha imaginação instigada pela triste realidade da depredação. Restou-me uma pergunta e gostaria de dividir com você: o que podemos fazer pela preservação da vida silvestre em Ilha Comprida?