Recém nascido
Nasceu o meu segundo filho. Chegou às 20:03, com quase 4 kilos e gritando com a fúria de um vocalista de heavy metal. Espero que tenha muita saúde e um pouco de sorte na loteria dos genes para puxar aos traços da mãe.
Eu já fui daqueles caras que dizia que não queria filhos. Seja porque viajo muito, porque trabalho demais, para evitar o caminho da manada, por alguma razão hedonista qualquer ou pela invocação das teorias de Malthus que conheci antes que os primeiros pelos de barba conhecessem os buracos do meu rosto.
Mas a chegada de um filho derruba tudo. Desaba muros, implode certezas. Muda você por dentro de um jeito que é inútil tentar descrever.
Quero vomitar a minha tradicional ironia, mas tudo que me escapa agora são palavras doces e românticas sobre a beleza da vida e a dádiva da paternidade. Sinto-me uma menininha grisalha e nariguda, com róseos vestidos florais a declamar singelos versos sobre o encantamento da vida. Horrorizado, percebo que meu sangue está prestes a virar mel e posso contrair uma diabetes literária de último tipo antes do final dessa crônica açucarada.
Penso em pular os muros da maternidade, ir até o boteco pé sujo mais próximo, tomar uma cachaça barata qualquer, daquelas que vêm com um escorpião no fundo da garrafa, cuspir no chão, vociferar palavrões, falar sobre futebol com um borracheiro gordo sujo de graxa e me recostar num pôster amarelado de uma playmate de 1991. Alguma forma de bruteza predadora que me tire desse transe piegas. Mas é inútil.
Alguma coisa impede de lançar-me em qualquer empreitada auto-destrutiva. Algo indelevelmente gravado no meu DNA me impele a um calculado ímpeto preservacionista. Sinto que agora estou proibido de me destruir, porque tenho dois seres indefesos para criar e proteger. Agora sei que vou dirigir mais devagar na Dutra. Que não vou mais pular de para-quedas, lutar contra o exército bósnio, cruzar o Oceano Índico a nado ou fazer tirolesa no pico mais alto do Everest. Não que já tenha feito qualquer dessas coisas antes, mas agora tudo mudou pra valer.
Sei que serei para meus filhos um super herói, super pai, mágico, malabarista, guitarrista, tenista, companheiro. Vou assistir entusiasmado aos desenhos da Galinha Pintadinha nas noites de sábado, nas manhãs de domingo e em todos os outros dias e horários também. Vou limpar cocô, xixi, e passar a noite em claro e achar o máximo.
E ele então vai adolescer e perceber que eu não sou mais um super herói, que não posso voar, nem fazer a mágica de sumir com o nariz dele, nem aparecer com minha ceroula vermelha para salvá-lo do pesadelo no meio da madrugada. Ele vai descobrir que sou um guitarrista meia boca e um tenista decrépito. E vai rir da minha rabugice e dos meus hábitos jurássicos de ler livros de papel e tocar músicas dos Beatles no violão. E vai bater meu carro, arranhar minha guitarra Ibanez e debochar da minha coleção de cd’s dos anos 80.
E eu vou maldizer esta crônica melosa que escrevi num patético acesso de felicidade ao ver aquele par de olhos inocentes cruzar com os meus naquela noite estrelada de 10 de setembro de 2013.
E então eu vou lembrar das alegrias que ele me deu, e que hoje eu gosto de Chico Buarque como meu pai gostava e que repito o ciclo da vida que um dia critiquei. E vou perceber que o amor incondicional que tenho por meus filhos permanecerá intacto, porque é maior do que eu mesmo, ou maior do que qualquer razão. Porque é algo que está indelevelmente gravado num lugar muito mais forte do que o meu DNA, está gravado no meu coração.
E só então vou perceber o grande milagre da vida. Mudado por dentro, destituído das minhas mais arraigadas certezas, perceberei como uma simples criança pode então fazer de mim também um novo ser.
Eu, quarentão e grisalho, mas a partir de agora, e para todo o sempre, um homem recém nascido.