Sonhar no Sertão e morrer na realidade urbana!

Sem conhecer forno de microondas, o que é Internet e nem a utilidade de um terminal rodoviário, Do Carmo arrumou a mala de couro bruto com algumas peças de roupa, certidão de seu nascimento e de óbito de sua mãe solteira. Era sua carta de alforria aos dezenove anos que completou no dia anterior. Nunca havia saído daquela pequena localidade de Lagoa dos Aflitos, a não ser para levar a venda na feira batatas doces, mamões verdes e maxixes que fazia de ganha pão. “Pão sem manteiga”, costuma dizer! E foi na feira que ela ouviu falar da vida melhor que o sertanejo acha que vai achar nas cidades grandes; “na terra da garoa, na cidade maravilhosa, ou onde há bons empregos e ricas patroas”, sonhava ela.

Foi assim que depois de pegar uma carona no transporte dos verdureiros e percorrido quase cem quilômetros, mal sentada em cima de um caixote na carroceria aberta, sentindo cheio do gás de cozinha que movimenta as velhas caminhonetes no Sertão afora, Do Carmo estava, enfim, em frente a um ônibus com ar condicionado, onde soletrou seu destino; Ia para uma grande cidade! Convidada a embarcar parou rapidamente no segundo degrau que levava ao interior do veículo, encantada com o ambiente de viagem, nem reparou que tantos outros passageiros homens encantavam-se também com seu corpo moreno, que nem parecia maltratado, adornado com um leve e quase transparente vestido de chita que a deixava tão inocente quanto na verdade era.

O ônibus em movimento. Os sacolejos no asfalto esburacado, a água mineral do copinho gotejando em seu colo; A janela de cortina aberta e lá fora o movimento que prendia os olhares da jovem, duas lágrimas deles caem ao cortar a região em que foi criada. Quando menina montava no lombo do jegue, e na época da safra chupava umbus até se fartar. Seu universo de criança se resumia à escola de classe mista, a merenda escolar era a principal refeição do dia. A boneca de pano que ganhou da madrinha, conservada com ela seguia viagem, espremida na bagagem. Do Carmo cochilou sonhando em ser feliz. Se é que já não havia sido!

Ao seu lado um jovem pouco mais velho, também migrando, tentava tocar com as pontas de seus dedos a mão esquerda de Do Carmo pendida para o seu lado, esquecida pela profundeza do cochilo. Ela acorda com o carinho, sorri, e pergunta se ele também ia ao encontro da felicidade. Januário, moreno, olhos verdes, nunca teria sido feliz em Mocambo, localidade de característica idêntica e vizinha a Lagoa dos Aflitos? Por que tão próximos tiveram que se conhecer em caminho de duas aventuras? Nem ao menos tinham destino certo na grande cidade. Januário explicou que ao chegar na cidade de destino compraria um jornal de anúncios de emprego, o que haviam lhe ensinado, e ali estaria seu destino. Pretendia ser jardineiro, acostumado que estava a lidar com a flora sertaneja.

Primeira parada, almoço, juntos e já de mãos dadas Januário e Do Carmo dividem o valor de uma refeição saboreada aos sorrisos e aos sonhos, imaginavam que um dia aquilo poderia estar acontecendo em um ambiente de lar. Ela pediu que procurasse com atenção nos classificados, ao chegar ao destino do ônibus, algum patrão que necessitasse de uma boa faxineira, caprichosa ela era, e de um jardineiro também. Era o amor evoluindo a cada quilometro rodado! Cai à noite e os ombros substituem os travesseiros, e amor sertanejo em sua linguagem própria vai se revelando, em palavras ditas em tom baixo e abafado pela cortina e janela agora fechadas. O ônibus já não era tão confortável como no início da viagem.

Ansiosa, já amando e sonhando com sua primeira noite de mulher completa, perguntou ao seu companheiro, já não apenas de viagem, mas de sonhos também, quando isto aconteceria. Januário, também aflito por este desfecho, contudo sabia que o pouco dinheiro que tinha e o que ela também trazia, juntos era pouco para uma noite de lua de mel, mesmo que em um hotel de “entra e sai” na periferia de uma rodoviária. Tinham pé no chão e estavam conscientes de que haviam de economizar, até que estivessem empregados e com os primeiros salários em mãos. Fizeram um pacto, teriam pelo menos trinta dias de imaginação, de contorções e gemidos em seus leitos solitários, até a consumação.

Aproximasse a cidade dos sonhos, a última parada, o lanche de café pingado e os últimos biscoitinhos fritos que Do Carmo trouxera, feitos no seu último uso do fogão a lenha. Pensava em quem ocuparia a sua casa de adobe, agora abandonada a mais de mil quilômetros, construída em terras de terceiros, na terra seca do Sertão, e que pouco valia vender, mais prático abandonar! Os poucos móveis que tinha havia dado a uma vizinha, a única que sabia para onde ia. Os últimos quilômetros da chegada lhes parecem mais demorados, e o verde das paisagens agora trocados pelo colorido das casas, e de longe os grandes prédios começam a ser avistados. Os olhares se voltam para a dianteira do ônibus e a expectativa acelera os corações.

- Por que o ônibus parou? Perguntam entre eles os passageiros assustados, mais ainda ao perceberem homens encapuzados com um revólver mirado para o motorista. Veio à ordem de mãos ao alto e o aviso de assalto, desmaios, saque, Januário e Do Carmo abraçados sentiam-se dependentes um do outro e juraram então amor para sempre. Dizem que os anjos lhes trouxeram as alianças.

Bandidos em fuga, ônibus ardendo em chamas, uns pulavam as janelas e outros esperavam passivamente a cremação. Os dois abraçados subiram aos céus envoltos em fumaça. E os sonhos foram trocados pela bruta realidade urbana. Pelos dias, meses e anos seguintes ninguém do Sertão, nem de Mocambo e nem de Lagoa dos Aflitos, procurou saber onde estavam Januário ou Do Carmo, seus nomes entraram para o rol dos que morrem clandestinos na guerra fria dos “governos” das metrópoles. Seus poucos familiares esperam que um dia ressuscitem e voltem para a felicidade que desprezaram!

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(*) Seu Pedro é o nome popular do jornalista Pedro Diedrichs (DRT-BA 398). Brasileiro, natural do Rio de Janeiro, residindo há cerca de quinze anos no Sertão da Bahia, casado, 59 anos escreve para imprensa desde o final do ano de 1967, aos 19 anos, tendo passado pela redação do Jornal do Comércio, em Manaus, AM. Poeta, escritor, humorista de texto. Foi colaborador na extinta revista “Urubu”, no final dos anos sessenta, não tem livro editado ate o momento. Que é um sonho! Edita o pequeno jornal Vanguarda (bi-mensal) na cidade de Guanambi – Bahia, Fones (77) 8811 6867 / 8811 7267 E-mail seupedro@micks.com.br , rua Vasco da Gama 71, Centro, Guanambi, Bahia, CEP 43460-000.