Alegria Conquistada

Aqueles dias eram gastos na madorna do lar, com uma leveza débil n’alma, de serenidade quase apática pelos cômodos vazios, lendo atentamente um livro antigo, substância removível de sua memória. Trazia as purezas intactas da infância em algum lugar. Recordava, como se estivesse com um álbum de fotografia nas mãos, os sobressaltos de quando criança, a adolescência conturbada, o início difícil da idade adulta e suas exigências titubeantes. Depois levantava os óculos tristes e cansados.

Todavia, não que a melancolia o dominasse. Havia uma árdua conquista a ser encarada e quem sabe dominada: a doce alegria perdida nos alagados obscuros do tédio, que sua vida, sem perceber, fora fincando bases ao longo de anos mais ou menos prazerosos, como uma vida, no fim das contas, que utilmente tinha resistido a si mesma, e então, finalmente com os dias assente, a irmandade com as coisas sólidas tinha trazido ao espírito um pouco mais da calma necessária para suportar aquela felicidade clandestina, dura, dura. Levantou-se, colocou um blues melódico no rádio já de tanto tempo, a saudade o cerziu por dentro – de quê? De quem? De onde e quando? Não sabia, não.

Sobre a cômoda do armário, os restos do que fora, quando ainda possuía o vigor necessário para longas batalhas burocráticas de seu emprego de vinte e cinco anos: papéis envelhecidos, recibos da receita, envelopes já amarelados, uma bíblia aberta no salmo 91, a proteção que tanto exigia para entrar na velhice com uma serenidade segura, beirando o amargo essencial que uma trajetória humana acumula, sem as despesas do destino. A cozinha, de modo geral, estava com a displicência juvenil de tempos atrás, mas agora o vinho acumulava-se na geladeira praticamente com o litro cheio, não dispunha de assaltos repentinos para preparar aquele prato que seus amigos lhe disseram que era afrodisíaco para ocasiões especiais. Afinal, pra quê tudo isso, se tudo descamba mesmo para a derrocada inevitável? Não. O tempo e sua inviolável tristeza já marcava seu percurso nas paredes do lar, especialmente nessa cozinha dura, vertical como um aforismo profundo e triste.

Estaria velho? Mas sessenta e sete anos, nos dias de hoje, não é estar velho! Ora! Fazia contas dezenas de vezes, rememorando os melhores anos vividos, três casamentos não é nada fácil, um filho apenas com a segunda mulher morando no exterior atualmente, e ele enfim sozinho, com a última esposa já morta, fazer o quê, o maldito enfisema não poupava ninguém mesmo, anos seguido do cigarro, a doença se preparando silenciosamente como uma alga nos pulmões. Resistira bravamente a alguns parentes distantes para que deixasse o apartamento, fosse morar com o irmão no interior, não podia ficar sozinho ali, agora que também já não era tão jovenzinho assim...

Do que, da vida, ainda lhe dispunha, essa assanhada devoradora? A julgar friamente, nada. Já estava aposentado há quase sete anos, não era propriamente alguém que gostava de se distrair jogando conversa fora nas praças com outros aposentados, nem também fazia parte de reuniões, clubes da terceridade, nada. Sua solidão agora era mais pungente, mais nítida como um girassol ao meio-dia. Observando o desenrolar dos seus sonhos nas noites longas, intermináveis, poderia dizer que a montanha já estava conquistada, caminhava agora para a última fase de sua aventura, a descida a passos largos, as pernas acompanhando velozmente o terreno liso, plano, descendente. Charcos movediços, serpentes enormes, uma mulher negra à frente de si sobre um quadrado de cimento acinzentado o convidando com os gestos lentos, sem expressão, para o abraço final.

Mas agora o blues já terminando definitivamente... Não dispunha de nenhuma coragem para avançar para o próximo ritmo melódico e soturno, apenas uma covardia serena, sem ressentimento, o seduziu, e se olhássemos atentamente para dentro dele, poderíamos enxergar que sorria, sentindo-se enfim conquistado pela vida, e não o contrário.

Fernando Marini
Enviado por Fernando Marini em 09/09/2013
Reeditado em 29/06/2014
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