Alexandre, O Grande Curioso
Quando a Ana apareceu naquela tarde comunicando que havia passado no vestibular, seus colegas correram para lhe abraçar e dar os parabéns. Alguns dos professores até aproveitaram para plantar um beijo na bochecha da bela loira enquanto a Diretora de Cursos dava aquele sorriso amarelo e saiu da sala dos professores após dar os seus, "Congratulations, Ana.", que foi meio seco e sem nenhum abraço, apenas um aperto de mão. Estava na cara que a Ana diminuiria a sua carga de horas/aulas e a Diretora teria uma enorme dor de cabeça além de noites mal dormidas com tudo isso. A Ana foi até a sala da Mrs. Betavas para 'negociar' os seus horários e turmas, afinal ela começou a dar aula nesse instituto aos 18 anos e lá se foram quase seis anos desde então. A Ana não era só uma das mais jovens teachers mas era também uma das mais populares da escola. Era também, sem dúvida, uma das melhores, e veja bem, o Instituto Roosevelt da 24 de Maio tinha lá uns trinta e cinco professores que lecionavam inglês, espanhol, alemão, francês, japonês e português para estrangeiros. Durante o meu 'Teacher Training' assisti algumas aulas da Ana e vi o quanto ela era inteligente, generosa e preocupada com a aprendizagem dos alunos, principalmente com os 'kids'. A Ana resolveu alguns assuntos com a Diretora e ao sair da sala, ela me chamou de lado e disse: "Veja bem Patricia, vou precisar muito da sua ajuda por que se você não ficar com as minhas turmas de 'kids', a diretora não vai abrir mão de mim e não vou fazer a minha faculdade. Você vai me ajudar?" Olhei pra Ana sem saber o que dizer mas consegui soltar o seguinte: "EU?" E a Ana respondeu, "Sim! Você! Por que?" Não sabia o que responder e ouvi a Ana dizer, "Você assistiu as minhas aulas e foi super participativa. Além do mais, senti que você gosta de dar aula e você sabe muita coisa pelo fato de ter morado fora e isso é muito importante. Tenho certeza que os meus alunos vão lhe adorar. Que tal?" Senti o meu rosto radiar e com um sorriso escancarado nos lábios respondi timidamente, "Sim! Vou adorar substituir você Ana!"
Herdei todas as turmas "Kids" da Ana e tudo estava indo a mil maravilhas a não ser por um certo aluno: Alexandre. O menino tinha sete anos e era muito esperto. Os pais tinham uma firma bem no Centro de São Paulo, na Praça da Sé, e aquele catatau pegava o Metro na Sé e descia na Estação República sozinho e sem pagar. Era 1980 e São Paulo não era perigoso como hoje mas uma criança daquele tamanho andando de Metrô sozinho não era algo comum.
Toda aula o Alexandre vinha sem caderno e eu pedia que trouxesse um para tomar nota do vocabulário e estruturas gramaticais além de fazer os exercícios. O menino veio com a mesma ladainha que havia contado à Ana que não precisava de caderno pois guardava tudo na cabeça. Mas o pior de tudo é que o Alexandre lembrava de tudo mesmo! Até questionei o fato à Ana e ela me contou que cansou de pedir o tal caderno por que o menino só tirava dez! E sem caderno!
Era norma da escola que toda criança tivesse um caderno, então pedi à Luíza, a secretária, para ligar e explicar aos pais do Alexandre que ele teria que ter um caderno para sua aula de inglês. A Luíza me deu retorno bem rapidinho: "A mãe do Alexandre disse que na segunda-feira ele vem com o caderno sem falta mas ela não garante que o caderno vai durar até a quarta-feira." Pensei comigo mesma: "Será que o moleque consegue perder um caderno novinho em um dia?" Segunda-feira chegou e o Alexandre compareceu com o caderno. Foi logo pedindo aos colegas um lápis por que não havia trazido nenhum. As meninas ofereceram seus lápis, afinal o Alexandre era uma garoto muito bonito e simpático quando queria.
A aula corria às mil maravilhas até o Alexandre levantar sua mãozinha e perguntar: "Teacher, por que a gente tem que falar 'a pair of' (um par de) antes de glasses, scissors, pants, shorts ...? Precisa mesmo?"
Respondi que era mesmo assim e que tínhamos que seguir a estrutura do exercício mas, quando falamos daria para deixar de fora 'a pair of' tranquilamente.
A turma de quinze crianças entre sete e dez anos fazia o exercício juntando as novas palavras ao seu desenho correspondente enquanto eu anotava a matéria dada e também fazia a chamada, quando do nada o Alexandre solta aquela pergunta: "Teacher, por que 'bicycle' não tá aqui? A gente fala 'a pair of bicycle'?" Olho na direção daquele menino e digo: "Não, Alexandre. Não dá né. Usamos 'a pair of' só para objetos que têm dois de alguma coisa como óculos, calças, shorts, pinça, tesouras e por aí, ok?" Ele olhou bem pra minha cara e disse: "E 'bicycle' não tem duas rodas?"
Pois é, né?! Boa pergunta! A bicicleta tem duas rodas. Por que não entra naquela lista do 'pair of'? Confesso que perdi toda graça do mundo naquele momento mas não deixei transparecer. Simplesmente devolvi o seguinte: "Good question, Alexandre! Respondo no fim da aula, pode ser?" E continuei com as minhas anotações no diário de classe. O menino curioso respondeu: "Ah! Sei! Vai fazer que nem a Teacher Ana, né? Diz que vai responder no fim da aula e vai deixando, deixando até esquecer e eu não vou ter resposta! É a terceira vez que faço essa pergunta sabia? E ninguém, ninguém sabe responder. NUNCA!"
Nossa mãe! Que saia justa ... justíssima senhor do céu! Pensei um pouco e disse: "Se eu falei que vou dar uma resposta no final da aula, eu vou cumprir com o prometido, ok, Alexandre?" Ele deu uma risadinha debochada e falou para todo mundo ouvir: "Tá bom. Vou esperar mas duvido muito. Se a Teacher Ana não sabe e nem o meu pai, acho que você não vai saber também."
E agora? Nunca passou pela minha cabeça o por que de eu não falar 'a pair of bicycle'. NUNCA! Quando criança eu não tinha essa autonomia toda que a criançada de hoje têm. Claro que eu fazia perguntas mas nem sempre a minha curiosidade sossegava com as respostas que recebia mas mesmo assim eu não questionava o por que de eu não estar satisfeita e feliz com uma resposta meia boca. Agora me vejo numa situação super constrangedora. Pelo menos era para mim. Preparei a aula daquele dia achando que tudo correria à mil maravilhas mas não imaginei que um certo curioso teria alguma pergunta que eu não saberia a resposta. Caramba! Nenhum livro explica por que não se fala 'a pair of bicycle'! WTF!
Faltavam uns quinze minutos para o fim daquela aula e eu não conseguia tirar aquela pergunta da cabeça. Prossegui com a aula normalmente mas 'a pair of bicycle' assombrava tanto a minha mente que comecei a sentir uma dor terrível.
Passei pelas carteiras dando meu visto nos cadernos de cada aluno e colocando um 'sticker' com uma estrela nos exercícios mais caprichados. Ao chegar no Alexandre eu ouço: "Não quero 'sticker' não. Quero a resposta!" Ouvi bem nitidamente o que o todo poderoso falou mas fingi ignorar. Corrigi o exercício dele no caderno mas enquanto isso, respirei fundo e pedi a Deus: "Senhor, me iluminai!"
Ao voltar à frente da sala não sei como mas veio um estalo à minha mente: "Pois bem Mr. Alexandre! Vamos à resposta do 'pair of bicycle'!" Olhei pra cara daquele menino e vi que ele me desafiava com aquele riso carimbado na sua carinha nada angelical.
"Não falamos 'a pair of bicycle' por que ....", e na minha cabeça eu suplicava para ser iluminada e rapidinho quando assim do nada eu saí com essa: "Como vamos falar 'a pair of' e depois falar 'BIcycle' ... se 'pair' é igual a dois e 'BI' também é dois? Fica meio estranho né? Dois-dois?" Fitei o Alexandre e vi que o seu rosto suavizou, e seus olhinhos cor de pão de mel voltaram a brilhar. Ele me passava aquela sensação de sossego agora. Já não parecia que sentava em cima de um formigueiro que lhe deixava irrequieto e incomodado.
O meu aluno curioso sorriu e disse:"É mesmo né Teacher! Não fica certo repetir uma mesma coisa assim! Você realmente sabia a resposta! Que legal!"
O sinal tocava agora nos avisando que a aula havia terminado. Me senti inteiramente aliviada! Aquela pergunta do Alexandre havia me sufocado por mais de uma hora e agora dava graças ao bom Deus por ter me iluminado no último instante.
Foi uma verdadeira lição aquela aula. Aprendi que por mais que preparasse uma aula, sempre haveria um detalhe ou outro que nem sempre iria saber. Outra coisa que aprendi: Sempre responder as perguntas dos alunos! Se eu não souber na hora, melhor confessar e pesquisar para depois prestar as contas se não a minha credibilidade vai água abaixo. Se gente grande se decepciona facilmente com quem os trata com descaso imagine uma criança.
Educação é ensinar aos alunos
como pensar, não o que pensar.
É sempre bom lembrar que criança faz pergunta mesmo por que ela é criança e quer saber o por que de tudo!
Afinal, você também já foi criança, né? Pois é, deveria saber! ;-)