FARSA QUASE MUSICAL

Quatro meses de mistério. Meios de comunicação mobilizados, opinião pública sensibilizada, centenas de telefonemas e mensagens, inúmeras orquestras européias contatadas... Tudo em vão. O artigo na Folha de São Paulo (23/08/2005) informa que, segundo fontes anônimas, o enigmático pianista não passa de um homem comum, com os problemas corriqueiros de sexualidade e desemprego, que já trabalhou em hospital psiquiátrico e pôde representar bem o papel de alguém com distúrbios mentais.

Um jovem alemão de 20 anos, alto e loiro, que, após perder o emprego em Paris, foi ao Reino Unido com a intenção de se matar; foi encontrado com as roupas completamente molhadas e sem etiquetas vagando pelas ruas; permaneceu internado num hospital psiquiátrico durante quatro meses, e retornou à Alemanha com sua identidade mantida em sigilo pelos representantes diplomáticos.

As características físicas e as vestimentas do jovem influíram no dimensionamento do seu mistério. E se não fosse alto e loiro? E se fosse velho e mal vestido? Seria ainda protagonista de nossa comoção e da mobilização da imprensa internacional? E se tivesse feições de um negro, árabe ou latino-americano? Não poderia ter sido morto ou preso com a acusação de suspeita de terrorismo?

O “homem do piano” poderia ser mais um anônimo que dá fim à vida e que não ganha sequer as manchetes dos jornais locais, mas soube, num momento de improviso, ganhar o papel de um misterioso personagem e preencher a curiosidade de muitos com as noticiadas trezentas identidades possíveis e, até mesmo, com a possibilidade de ser um Kaspar Hauser contemporâneo.

Um personagem que se fosse não seria e, não sendo, se tornou algo no imaginário coletivo!

Por que suas roupas não tinhas etiquetas? Por que emergir (encharcado) no Reino Unido se é alemão e trabalhava na França? Quando e como foram extraviados os seus documentos? Por que a representação diplomática se nega a fornecer mais dados sobre o alemão se a atenção do mundo se voltou para a sua aparição e o seu mistério?

Findo o espetáculo com tantas interrogações sem respostas, resta uma estranha sensação de vazio e logro nos espectadores que assistiram aos atos conseqüentes à aparição do personagem misterioso. Uma realidade? Uma farsa?

Quando abriram as cortinas, o enredo introduziu a possibilidade de inocência poética reencontrada na música de um jovem talentoso ou, para os mais descrentes, o medo da realidade refletido no olhar assustado de um homem que perdeu a razão. Despidas as máscaras, poderia ser qualquer um que retornasse à essência da vida e se ofuscasse com as falsas iluminações. Despidas as máscaras...? Por ironia, o “homem do piano” era apenas uma nova alegoria a distrair nossas atenções e com ela a finalização de um estranho jogo cênico sem grandes justificativas, fadado ao esquecimento da representação e, talvez, num ato mais reservado, à notoriedade do personagem.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 24/08/2005
Código do texto: T44704