Enxaqueca e saúde pública, entre outras mazelas

Excetuando poesia (mas isso é minha opinião) nada existe de perfeito no mundo: há vantagens e desconcertos inclusive em habitar numa cidadezinha do interior do Ceará do Brasil – lugares bons demais de prestar, também no que concerne ao quesito ‘atendimento à saúde’, cujos questionamentos quentinhos tem posto clientes, profissionais do serviço e governos na corda bamba.

Sofro de enxaqueca. Não queria, não, mas sofro. E não é minha culpa, posto que o raio da doença é condição hereditária que faz dilatar em excesso os vasos capilares da região craniana, causando dor que só cessa com injeção intravenosa (ao menos no meu caso); assim, dada a miscigenação clara e evidente porque passaram as famílias brasileiras, responsabilizem europeus, ameríndios, africanos, asiáticos ou alienígenas, mas não a mim: eu – tão somente – sofro!

Ocorre que, excetuando poesia (mas isso é mera opinião) tudo cansa, especialmente o sofrimento físico, de forma que fui a médico neurologista e comecei a seguir tratamento com droga controlada, a qual nunca havia utilizado antes; na condição de neófita dos efeitos colaterais da dita cuja carcará quase sanguinolenta (é, eu tenho medo de remédio ‘forte’), corri do trabalho ao hospital da garbosa Morada Nova, buscando amparo na unidade hospitalar da Fundação São Lucas, entidade filantrópica que oferta os serviços de atendimento de urgência e emergência médica nesse rincão. (É necessário que se informe: apesar de haver outro equipamento de saúde, nomeado elegantemente de ‘hospital regional’, a unidade anteriormente citada é a única no Município apta àqueles tipos de atendimento.)

Cheguei ao hospital e me preparei para esperar. Estou acostumada a esperar: anos de dores fizeram-me uma paciente bem paciente... E eu nem estava sentindo dor, só um medo danado de morrer, porque o mundo girava, girava e parecia que tinha um pedal de acelerar coração, no meu... e também porque – justiça seja feita – nunca havia ido em busca de socorro médico ali que tenha ficado sem conforto técnico correto. Eu esperaria. Ali, no hospital, qualquer problema extra seria mais facilmente resolvido (esperança é balsamo, ora!).

Sei como funciona emergência de hospital; sei que a maioria das pessoas que vai ao local o faz em desespero de causa; sei que aliviar o meu tempo de consulta é agilizar o atendimento dos demais. Então, após a ficha preenchida (procedimento de praxe), procurei o ambulatório com intuito de medir pressão arterial, de forma a facilitar diagnóstico do médico sem fazê-lo perder tempo com atividade tão simples.

De cara, deixei em paz a Auxiliar de Enfermagem de plantão: era ela, só elazinha, para atender meio mundo de demandas. Saí do hospital e me dirigi a uma das farmácias vizinhas, onde consegui ajuda; de posse de outra informação balsâmica (pressão baixa é ‘melhor’ que alta), aquietei-me para esperar um bocadinho mais além da conta.

E esperei: dez minutos, que, muito lentamente, se transformaram em vinte, e, mais devagar ainda, em mais alguns...

Aí o médico saiu do consultório e avisou que, devido estar atendendo desde cedo da manhã, encerraria com os pacientes que haviam chegado até as 18:00h, “pois eu, também, preciso descansar um pouco, inclusive porque vou pegar o plantão da noite”.

Muito justo, apesar de não estar correto, pensei (e há uma piada bem safada que contrapõe os dois adjetivos). Encaminhei-me à recepção, onde – com a cara mais desbotada do mundo, de tão lavada – o atendente sapecou em minha ficha o ‘horário em que eu havia chegado’: 18:20h.

Danou-se! Eu saíra do trabalho um pouco antes de 17:30h; o tempo de deslocamento até o hospital não chega a dez minutos (e eis uma das vantagem de morar por aqui). Tenho certeza de que o coração acelerado, as tonturas e o medo não haviam apagado nem debilitado minha capacidade de efetuar as duas principais operações matemáticas - em suma, as contas não ‘batiam’.

Acima do balcão da recepção há um cartaz mais ou menos assim: “Art. 331, do Código Penal Brasileiro – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa.”

Ah, que me deu ganas de ser presa! Bufei de revolta, chamei aquilo tudo de palhaçada, mas sabia que de nada adiantaria engrossar o caldo: há uma espécie de corporativismo nos serviços públicos que rejeita qualquer razão do cliente, pobre desavisado. Então lembrei da pressão baixa – mais aprazível que a alta, embora tão desconfortável quanto – e decidi morrer (de medo ou de verdade) em casa.

Esperar a morte cansa, também... Paciente agora impaciente, resolvi escrevinhar umas coisinhas, só para entender melhor essa dinâmica estropiada entre clientela, serviços médicos e governo.

Assim, parece que temos:

1. uma população excessivamente dependente de cuidados médicos, por deseducação/carência alimentar e baixo nível de educação física e formal (entre outras razões), ocasionadas por contínuos descasos de gestores públicos – os quais ainda não ‘sacaram’ que até a elite capitalista que sempre representaram não pode mais se permitir o luxo de ter servos deseducados e doentes;

2. concursos públicos feitos para ocupação das vagas nos serviços de medicina nos interiores desse país varonil (e apodrecido de tanta covardia institucionalizada), seja emergencial ou constantes do Programa Saúde da Família – e vagas ociosas porque profissionais médicos sequer se inscrevem;

3. a maneira (se não legalmente, ao menos, moralmente) criminosa como algumas unidades de saúde se ocupam em ocupar os médicos (e não me referirei a outros profissionais tão sobrecarregados quanto), cuja jornada não deveria exceder oito horas com intervalo ou seis horas corridas, como qualquer trabalhador, e que, se lotados para atendimentos de urgência/emergência, não deveriam ser deslocados para visitas a leitos de internos nem realização de exames não eletivos;

4. médicos sobrecarregados de trabalho – e uns imbecis querendo impedir que outros médicos exerçam as funções (também por puro corporativismo!), enquanto sequer tiram suas médicas bundas dos confortáveis e médicos bancos dos consultórios das clinicas médicas de alto padrão, onde ganham seu necessário e médico 'faz-me-rir', com acessos de desculpite médica crônica agudizada (falta de condições de atendimento, por exemplo – mas isso se parece, na maior parte das vezes, com auto reconhecimento de pretensa incompetência);

5. o comportamento incompetente ou corrupto – inominável, mesmo! – de políticos e gestores de saúde, que, pelo uso desonesto e/ou indevido dos recursos financeiros, materiais e humanos impede eficácia/eficiência/efetividade de ações preventivas e de atenção básica, o que ajudaria a desafogar em muito o atendimento emergencial – porque há uma diferença gritante entre estar numa emergência hospitalar para tratar da ‘perna quebrada nessinstante’ e ‘vim mostrar uns exames pro doutor...’

Pois, sim: após o não atendimento, fui para casa e, quando pude, fiz poesia, que a mim não cansa. Três dias depois, fui de novo ao mesmo hospital - e desta vez em plena crise de enxaqueca. Muito bem atendida pelo mesmo médico que, em ocasião diversa, se sentia podre de cansaço, tive, finalmente, quase debelada aquela crise (digo 'quase' porque minha enxaqueca tem temperamento, personalidade e caráter: só passa quando quer).

Não morri, como se vê e lê. Larguei o medicamento pesado, mantive a calma enquanto desintoxicava o corpo da bicada dessa ave de rapina... Voltei a me sentir bem, e como sofro de enxaqueca – fato agora tão nítido como os cinco pontos acima expostos – estou à espera de outra crise. Também não creio que morrerei, quando ela vier.

Tudo cansa, exceto poesia; com uns cansaços a gente aprende a conviver.

E o povo brasileiro é muito paciente e pacífico, já que não vive metendo a mão na cara de certos servidores públicos incompetentes e sem ética - especialmente nas daqueles em quem vota!

Mas essa é só é minha opinião...

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 05/09/2013
Reeditado em 30/03/2022
Código do texto: T4467833
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