Açaí natural
O Brasil todo se delicia com o açaí seja através de sucos, sorvetes ou outras iguarias e, mais originalmente, no Norte, onde se degusta a polpa ao natural de várias formas: com farinha d'água (ou puba), farinha seca (ou branca), farinha de tapioca ou mesmo como guarnição para um bom peixe amoquinhado e mil outras formas. A grande maioria das pessoas passa a gostar dessa preciosidade na primeira degustação, outras levam um tempo maior. Muito raramente alguém definitivamente não gosta dela. Meu pai, entretanto, levou muitos tempo para encarar com naturalidade seu consumo. Mas teve um porém! Seu primeiro contato foi, digamos assim, inusitado.
Arigó, soldado-da-borracha, foi direto para os seringais nos arredores de Rio Branco, mesma região onde Chico Mendes foi morto, muitos anos depois. Certa ocasião a colocação onde estava foi convidada a degustar açaí numa aldeia indígena próxima. Querendo saber o que era e como se preparava o tal prato os próprios companheiros nativos (mas não indígenas) explicaram que tratava-se de um coquinho nativo das florestas que, a grosso modo, se colocava de molho em água morna por algum tempo e depois levados a uma peneira (que, àquela época, deveria ser de cipó ambé) e ali esfregados entre as mãos e contra a peneira, regando-se com um pouco de água de cada vez. O líquido pastoso obtido então era misturado com açúcar, mel, melado ou outro adoçante e acrescentava-se farinha de mandioca. Disseram-lhe também que essa era a maneira que os acrianos empregavam, e quanto a maneira utilizada pelos índios, pouco se sabia.
Meu pai que era desconfiado e que já recusara leite em pó por muito tempo, temendo ser veneno, conforme boatou-se na sua vinda do Nordeste ("isso é veneno pra matar todos nós de uma única vez"), ficou receoso e resolveu espreitar o fabrico daquela novidade. Foi-se chegando faceiramente entre as arvores da floresta e depois entre os arbustos até que finalmente avistou uma grande algazarra onde alguns indígenas, homens e mulheres, pareciam dançar e cantar desordenadamente. "Deve ser o ritual de preparação para nos receber", pensou ele. Mas como o objetivo-mor de sua "espionagem" era outro, não parou por aí. Se aproximou mais ainda até que viu com mais nitidez tudo que acontecia. Havia uma gamela grande feita de um tronco de árvore deitado ao chão (estilo canoa) e dentro dela estavam os "dançarinos" (ou seriam "ritualistas"?). Ficou algum tempo observando até que uma índia mais velha aproximou-se e colocou uma enorme quantidade de umas frutas pequenas que correspondiam à descrição do açaí. Foi aí que compreendeu que ali estavam produzindo a tal polpa com os próprios pés, tal como se produzia vinho na antiguidade. Todavia, e aí a diferença, os indígenas estavam trajados a rigou, ou seja, nus como Tupã os colocara naquelas paragens. Aquela visão não causou uma boa impressão ao meu pai. Principalmente depois de assistir à um índio escorregar e cair sentado dentro gamela, levando consigo, pelo desequilíbrio mais duas moçoilas, obviamente também nuas. Não esperou terminar a gargalhada pela queda dos três para bater em retirada e ainda assim não conseguiu tirar da cabeça a imagem que sequer esperou para ver, dos índios com as partes íntimas recobertas por aquele "creme" roxo que depois foi o prato principal no banquete que se seguiu. É claro que tratou de inventar uma boa desculpa para declinar ante a insistência de todos para a degustação do famoso açaí.
Com o passar dos anos o açaí venceu o "preconceito" (literalmente falando) do meu pai, de forma que quando chegou a minha vez de aparecer no cenário já só havia uma pequena restrição quanto a seu consumo com alguns outros alimentos, tipo leite, abacaxi, manga...
Décadas depois, perguntei ao meu pai se ele revelara o segredo do açaí aos demais amigos e ele me respondeu que não quis causar uma animosidade entre aqueles povos tão amigos e já tão acostumados aquele tipo de festa, mas alguns anos depois e já longe daquelas cercanias contou o ocorrido à um ou dois amigos que haviam participado daquele evento: só não levou uma surra pela omissão porque a idades deles já não era propícia para essas atividades...
Glossário
Amoquinhado: levemente cozido, de forma simples, quase sem tempero e bem suculento; geralmente sobre uma fogueira, churrasqueira, fogareiro ou ao forno.
Arigó: Amazônida oriundo do nordeste, sobremaneira durante a segunda grande guerra.
Colocação: aglomerado de residencias de seringueiros geralmente no meio da floresta.
Tupã: Deus indígena
P.S. Devo esclarecer que não nutro nenhum tipo de discriminação aos costumes culturais sejam de qual povo sejam, assim como o meu saudoso pai. O fato mereceu destaque na sua memória pelo choque cultural que causou. Ele mesmo costumava acrescentar, quando recontava o "causo" que cada povo tem seu jeito de ser...e isso deveria ser respeitado. E dizia ainda que esse teria sido o norte que tomara ao não divulgar a descoberta que fizera naquela tarde de mil novecentos e quarenta e tantos...