O HOMEM E SEUS DESTINOS

Todos os dias, tomava o bonde a mesma hora sempre, em sentido ao centro. Usava chapéu preto, um casaco escuro também, os passos lentos entrando com sofreguidão nos degraus do trem, a partida pela ladeira abaixo, a sombra rápida cruzando meus olhos. Nunca soube de suas feições, apenas que, pontualmente, de segunda a sexta (e talvez aos sábados) fazia esse itinerário.

Mas o que de tão misterioso havia nisso tudo? O que de tão recôndito e inalcançável era para mim? O mistério maior, creio, era o próprio homem e sua jornada secreta e pontual, a rotina sacrossanta, sua descida rumo a alguma repartição central, os serviços burocráticos, e, por fim, o meu desespero em não reconhecer suas origens remotas, seus fracassos, seus medos e suas vitórias. De nunca, provavelmente, poder trocar meia dúzia de palavras insólitas à margem da calçada, à espera da próxima condução. Em, focalizando uma parte apenas – enxergando a sombra da sombra de um homem – não conseguir interagir com a pessoa por detrás daquele sobretudo negro, por trás dos gestos demorados, de uma tristeza longínqua e dispersa, quase medieval. Então tomava, melancolicamente, o ônibus que me levaria à repartição mecanizada, e dentro um sentimento, misto de fracasso e alguma coisa sem sentido, prestes a romper.

E assim passaram-se dias, semanas, meses, anos inteiros. O homem não tirava férias nunca? Não tinha direito a folga? O que um homem e seu casaco escuro, sem nada nas mãos, faz como cidadão participativo? Quais seriam suas obrigações, compromissos? Teria família? Será que nunca havia reparado em mim, um burocrata de terno e gravata, que sempre o observava à espreita, à procura de sua pessoa por detrás daquela máscara solitária e itinerária? O que nos unia além do horário de nossas conduções? Sim, era a terrível condição do nosso destino que parecia não escolher seu próprio destino.

Aliás, nos encontrávamos em um ponto do dia, a certa distância segura um do outro, cada um entrava em sua lotação devidamente numerada, com destino certo, seguia para sua solidão compartilhada com outras pessoas que também não estavam atentas, voltadas para o círculo mesquinho de metas e objetivos a cumprir, e os dias seguiam inexoráveis, ininterruptos, a vida alargava-se em encontros breves, desencontros demorados, em chegadas precipitadas, partidas e adeuses dolorosos e essenciais, mistérios simples ignorados do dia-a-dia, mas que eram a fina delicadeza da manhã.

Fernando Marini
Enviado por Fernando Marini em 03/09/2013
Reeditado em 29/06/2014
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