O CANÁRIO

Cheguei cedo na casa do meu amigo e esperei-o, enquanto terminava de se aprontar pra irmos para o jogo de quarta-feira, na varanda de sua casa. Havia ali um canário da terra trancafiado numa gaiola diminuta e suspensa, e, observando-o mais atentamente, seus pequenos olhos cor de mel eram tristes, apagados, distantes talvez para qualquer tarde em arrebol em que cantava livre e distraído em algum lugar da zona da mata com muito espaço e outros canários da terra, aquela algazarra de fim de tarde. Seus pequenos olhos absortos miravam paisagens perdidas. Não cantou, mas supunha que seu canto, se houvesse, deveria ser triste e melancólico como um jeito de condenado à perpétua.

Por um momento, enquanto meu amigo não vinha, súbita vontade me veio de ir até a gaiola, abri-la, soltar para o infinito da noite aquele canto angustiado e talvez já desesperançado que o canário sustinha, nas horas caladas e soturnas, com dificuldade. A vida, às vezes, é de uma terrível limitação existencial para alguns.

Quão ruim deve ser possuir asas, ter um veículo de voo próprio, e mesmo assim, pelo sabor humano e egoísta de ver um pássaro e seu canto de perto, estar trancado numa minúscula cela, domesticado naquilo que á natural e da espécie, sua liberdade e identidade adulteradas para sempre. O mais comum é que talvez eles cantem de tristeza inconsciente (ou não), o canto representando uma dor profunda, que não captamos no curso de um ou dois sorrisos falsos, e logo passamos, o canário fica lá, olhando qualquer lugar distante, ausente em si mesmo, longe da compreensão humana, mastigando um voo silencioso pelo escuro libertino da noite.

Dali a pouco meu amigo logo veio, sorrindo, trazendo a camiseta do time jogada por cima do ombro, feliz, inconsequente.

– Hoje vai ser três a zero pra gente, seu Maneco!

Certamente. Mas creio que para o canário a derrota já lhe vai na pequena alma há algum tempo, de toda irremediável, sem chance mesmo de fugir à insanidade desse jogo absurdo e humano, e então ir com seu canto e apito pro sertão, de onde nunca deveria ter saído.

Fernando Marini
Enviado por Fernando Marini em 03/09/2013
Reeditado em 29/06/2014
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