STANLEY JORDAN: COMPLEXIDADE COMO BELEZA
Planeta Terra. Ano de 2013. Sábado, último dia de agosto. Ipiabas é um distrito de Barra do Piraí, Estado do Rio, Brasil. Da minha casa em Mendes até lá leva, no máximo, uma hora de carro. Então fomos. E na noite fria da altitude do lugar, fomos bem acolhidos. Quase todo mundo com casaco de couro. Metade das mulheres com botas. Isso dá um indicador de classe. [Deixemos pra lá esse assunto, por ora] Muita gente conversando sobre música. Muita gente com a estampa do uísque Jack Daniel’s no peito. Algumas pessoas que não sabiam quem ia tocar no aconchegante palco montado na praça, no fundo de uma enorme tenda. Tudo muito bem: fizemos nosso passeio de reconhecimento. Ah, cerveja Heineken com ótimos bolinhos de bacalhau, isso é importante. Eu estava feliz. Era o III Ipiabas Blues Jazz Festival. O festival reuniu atrações pra lá de interessantes, como o violonista Hélio Delmiro, o saxofonista Derico (do Sexteto do Jô), o bluesman Kenny Brown e – além de atrações locais – a lenda moderna da guitarra Stanley Jordan, atração inusitada nos arredores das fazendas da região.
O show de abertura da noite com a banda local The Black Bullets não poderia ter sido um esquenta melhor. Muitos aplausos a cada música, e de forma merecida. Depois pisou o palco Kenny Brown com toda sua elegância, simpatia e vigor. Kenny é uma mistura de B.B. King com George Benson, utilizando, inclusive, técnicas que remetem aos dois. Estávamos na primeira fila e Mr. Brow fez, com sua Fender Stratocaster na cor clássica, alguns trechos de solo “para mim”, ou seja, olhando pra mim e esperando a minha reação. Ele percebeu o quanto eu fiquei empolgado e sorridente com seus primeiros scats (aqueles solos que o cara faz com a boca e guitarra ao mesmo tempo). Sei disso porque ele, num gesto bem americano, apontava o dedo pra mim. Em seu repertório, uma ou outra canção de seu CD e sucessos do blues e do soul, como a clássica balada Georgia On My MInd, rearranjada com batida de blues.
Expectativa pra a maior atração do festival, Stanley Jordan. A aparição de Jordan é um susto. Ninguém avisou ao público – nem os folhetos de divulgação o fizeram – sobre o novo visual do guitarrista. Aliás, ele está de visual modificado desde o ano passado, mas como não vive na mídia, quase ninguém sabe. Então tem-se em mente a imagem tradicional dele: magro de média estatura, corte de cabelo curto, padrão homem negro sério e camisa social. Não nos foi avisado o que veríamos. A própria publicidade do festival usou fotos antigas do artista. E eu me enquadro nesse grupo de desavisados. O novo visual de Stanley Jordan consegue se avolumar diante de sua música – que é enorme – ofuscando-a por alguns minutos. O rapaz de 53 anos agora usa cabelo de chapinha japonesa, brinco de peninha colorida, unhas pintadinhas e uma bata com lantejoulas. Sim, o Stanley Jordan esta parecendo aquela bicha (sem homofobia, pelo amor de Deus, esta é a palavra que se dá pra designar o tipo de figura que estou tentando descrever) que você viu num calçadão ou dentro de um trem, figura andrógina, sei lá. Ele me parecia um Laerte do jazz. A associação com um travesti é imediata e só não ouvi com clareza os comentários de espanto nos momentos que sucederam a entrada no palco porque o som era bem alto, mas um zunzunzum nos intervalos das primeiras músicas eu pude ouvir, e parecia um enxame de cigarras atordoadas. Confesso que fiquei preocupado com o show e com o que o destino reservava ao guitarrista naquela noite. O show anterior ao dele com um Kenny Brown tão másculo, tão alfa, tinha incendiado o público, e agora a entrada de Stanley ao palco sob os olhares desconfiados e um silêncio constrangedor não era um bom sinal. Quase ninguém naquele lugar sabia que a sexualidade do guitarrista é hoje assunto no mundo do jazz. Panorama desfavorável. Mas a lenda venceu. Logo todos se acostumaram com sua excentricidade visual, e sua música ocupou, enfim, a frente da apresentação: uma apresentação se não irrepreensível – por conta de um ou outro problema técnico – de rara beleza. Vendo e ouvindo Jordan tocar, a gente tem a clara sensação de que não será possível a nenhum guitarrista conseguir explorar o instrumento para além do que foi feito ali naquele palco. Ele parece ter explorado o braço da guitarra ao máximo, ao limite, ou, poeticamente dizendo, para além disso. Suas técnicas de tapping e two-hands estão amplificadas às franjas do impossível. Jordan está entre os maiores guitarristas de todos os tempos, disso não há mais dúvidas. O prazer de ver isso há três metros do seu estômago é inenarrável. A alegria de ter presenciado tamanho espetáculo de sensibilidade, talento e originalidade.
Acompanhado dos “monstros” Dudu Lima, no baixo, e Mamão, na bateria (seus envenenados e maravilhosos acompanhantes brasileiros), Stanley Jordan contagiou um público espantado com uma apresentação que alternou momentos solo e com o trio. Difícil destacar momentos do show. O fato de eu não ser conhecedor de seu repertório me limita muito. Sua conhecida versão para Eleanor Rigby, dos Beatles, de seu disco Magic Touch, de 1985, está mais “rock” e veloz, e, falando em rock, a última música antes do bis, Stairway to Heaven, do Led Zeppelin, foi de tamanha energia e grandiosidade que não deixou dúvidas de que todas as pessoas presentes naquele lugar estavam envolvidas num show hipnótico (se é que existe hipnose auditiva). Não era mais possível “gostar pouco”. Fechando a apresentação, uma jam com Kenny Brown onde tocaram trechos de várias músicas numa base blues-rock-funk, envolvendo um “duelo” entre os dois e o final mais barulhento possível a um show do gênero. Durante todo o seu show, Jordan não é apenas um homem com sua técnica. Ele hoje é mais do que isso. Apesar de introspectivo e tímido, ele claramente se diverte no palco. Não só com as mãos, mas com todo o corpo, quando, por exemplo, dá saltos do platô onde fica o baterista, marcando o movimento do corpo com notas firmes na guitarra.
Show terminado, fui tentar um autógrafo. Meu acesso ao camarim foi inacreditavelmente fácil, talvez pelo fato de eu estar na primeira fila. Foi só dar alguns passos à esquerda, e ao fundo do palco. Perguntei a um cara que não parecia segurança como eu fazia pra chegar até o artista. A resposta foi: “Abre aquela porta ali”, exatamente isso. Rodei a maçaneta, e estava no cômodo branco o Stanley, que me diz educadamente, com olhar surpreendentemente humilde e com voz doce: “One moment, please!”. Eu: “Excuse me, Mr.Jordan”, e fechei a porta. Provavelmente eu nunca mais o veja. Cruzamos em sentido contrário a fila daqueles que estavam além-alambrado querendo autógrafo. Pensei na bobagem de eu ter um autógrafo dele, sendo que eu nem sou guitarrista, e a ideia começou a me parecer meio tonta, sei lá... Agora só queríamos ir pra casa descansar. Saindo, encontrei com amigos com cara de “a noite é uma criança”. Um deles, um velho amigo, comenta: “Viu só que barulheira?”, num elogio.
Voltei pra casa feliz. O visual do artista continuou sento assunto, no carro e depois em casa. Eu puxando pra música dele. Ela para o visual. Eu pondero lembrando Jimi Hendrix com suas indumentárias coloridas e escandalosas. Mas, no fim das contas, eu não pude deixar de perceber que o novo look de Stanley Jordan faz parte de um todo mais complexo e belo, de uma nova fase em que o guitarrista e o homem – que no caso dele são a mesma coisa – estão num processo de transformação e que nisso está incluído o novo grande vigor e impacto de sua participação musical neste mundo. Finalizando: o show do Stanley Jordan Trio não me pareceu coisa deste mundo.
(L.F.)