SOB O ENSAIO DO MINARETE MÁGICO

Naquela linda tarde que já caia iluminada a vida ali fluia como se escapasse dum conto antigo, desses, que quando acabamos de lê-lo temos a impressão que as fadas sentenciaram o seu destino.

Pela janela do bondinho eu observava o caprichoso movimento pela sua linha bem sinuosa, a que cruzava o asfalto obediente, aonde muitas pessoas corriam para alcançarem seus destinos dentre uma multidão comportada de mais ou menos doze milhões de pessoas que, ao contrário de algumas megalópoles, não se amontoavam em batalhões humanos de guerra pela tão árdua sobrevivência,como às vezes vemos dentre gente cansada, automatizada como robôs pelos "dias- a- dias" de moderno escárnio urbano.

Os alto- falantes noturnos já se preparavam para quinta chamada diária do Hamadan, algo muito novo para mim, e pelas calçadas já se observava as toalhas esticadas caprichossamente para o tão alegre desjejum religioso de quem o dia todo havia orado e jejuado arduamente pela sua fé.

No final da avenida central uma mesquita acabara de acender suas ascendentes luzes azuis para clarear o céu dos seus fiéis, a também evidenciar sua arquitetura artística deslumbrante, de traços milenares que encantam os olhos dos corações que sabem reverenciar e perpetuar o valor das tantas e diferentes civilizações históricas.

Chegada a minha vez, saltei na estação de destino e alcançei alguns quarteirões para atravessar a avenida principal.

No resquício da última luminosidade do dia que se ia, encantada, pude atentar para o fato de como a Terra gira tão rapidamente- sem o comando das nossas mãos!-a trocar de cenários,a fazer sua bela antítese entre dia e noite; bem como pude constatar, dentre as cenas cotidianas, que nem sempre seus palcos são tão luminosos pelas noites afora de qualquer cidade, a despeito de todas as luzes noturnas que se acendem.

Porque de súbito, na calçada do outro lado da minha travessia, meu pensamento foi alentado por um ensaio solto que, com maestria, soltava tenuamente notas delicadas pelo som duma flauta doce, de arquitetura oriental rebuscada, qual uma sonoplastia que escapava do sentimento invisível para musicar um drama teatral das grandes megalópoles.

Ali, uma criança de nove anos, enquanto dava o colo ao sono de seu irmão de cinco, encantava os transeuntes da avenida que, eternecidos, paravam para lhes depositar uma moedinha dentro duma caixa vazia de papelão que rapidamente se transbordou de metal.

Repeti o ato e tentei uma comunicação.

Numa timidez flagrante, relato que me disse que esperava pelo pai que fora comprar pão para a oração festiva daquela noite.

Então, soaram os chamados para o Hamadan, num discurso musicado, como se todos os minaretes mágicos do mundo se mesclassem àquela flauta do garoto em sinfônica una e teologal.

Há sons que se tatuam na gente para todo o sempre.

O pouco que entendi da cena me foi muito mais do que o suficiente para me certificar de que os olhos da Humanidade muitas vezes se perdem pelas suas tantas belezas, as que ocultam muitos dos seus tão tristes destinos, ainda que explicitamente desenhados pela história de fé das suas calçadas.

Sai dali de volta para o meu pensamento a me recontar quantas moedinhas (furtadas de tantos!) seriam necessárias para retocar alguns de nossos cenários...os mais próximos dos olhos e do destino das nossas gentes.