Música para elevadores
A porta abriu para um andar vazio . Continuei sozinho , em ereta e determinada contemplação do nada , a língua esgravatando o buraco da cárie , de reparo sempre adiado pelo mestre da procrastinação .As paredes metálicas, um todo de assepsia brilhosa , numa paz erma e escorregadia .
Emparedado e móvel , a setenta metros de altura . O aço por testemunho do que piso e me cobre a cabeça ; perturba – me
essa música rastejante sob o silêncio , a ausência de cheiros , odores e nuances . Um ser assustado me observa , do outro lado deste dilema de aço : eu mesmo , sobraçando meu jornal e minha circunstância . Talvez a vida me tenha sido leve :sentimentos anódinos , memórias desinfetadas , o fim da infância descoberto no
limiar da velhice . Agora , a música tão próxima , quase a brotar – me dos olhos,ligados na tinta forte das manchetes . Paramos. Mais alguém na caixa.
Uma mulher – ruiva de fato ou circunstância ? Procura na bolsa , tateando um sentido inexistente aqui fora , até esbarrar no batom ; joga os cabelos para trás , em frio e largo gesto ; retoca os lábios fazendo minhas pupilas de espelho, mas não me vê .