Todas as pessoas que havíamos matado

A gente um dia se muda, vai pra outro bairro, outra cidade, e desliga-se de todo um mundo que nos parecia o único. Saem as referências espaciais, as ruas em que nenhuma mudança passava despercebida, o momento exato que sabíamos ser a hora de apertar o botão para descer do ônibus, os supermercados que esquadrinhávamos e sabíamos aquilo que era mais barato em cada um e onde o pãozinho era melhor, mas sobretudo saem as pessoas. As mais significativas, as do nosso relacionamento, as que só conversavam sobre o tempo, as que apenas se cumprimentava e as que víamos existir, sem troca de palavras.

Há vezes em que o corte é feito ainda na infância, e então acrescenta-se àquela saudade, que um dia vem, uma dor maior, de um tempo irrecuperável e às vezes de uma felicidade também. Mas então já habitamos um mundo diverso, novamente único, que exige toda a nossa atenção e nos impele a prosseguir, sempre em frente, porque o mundo não para, e o espaço para a lembrança é cada vez menor, cada vez menos compreensível, e já não há nada que ela possa nos ensinar.

Mas vem um dia que o passado busca mais espaço, quer voltar a passar pelo coração – quer ser recordação, e por onde não se espera, como uma rede social. Nelas se conhece não-conhecendo muita gente. Até que sem querer descobrimos alguém que já conhecíamos, morava perto de casa, jogamos bola juntos, mas puxa vida, eu não te reconheci, será possível, quanto tempo faz. E então, ávidos, absolutamente ávidos, remontamos a nossa história em comum, cada um ressaltando coisas diferentes, jeitos diferentes de viver a mesma coisa, e juntos revivemos todas as pessoas que havíamos matado, o destino de cada um, o pouco que sabíamos, e concluímos que tudo era muito bom, as crianças de hoje não sabem, a gente precisa reunir o pessoal qualquer dia, mas esse dia não acontecerá nunca, porque todos vivem em mundos diferentes, e porque talvez o melhor mesmo seja deixar tudo da forma que nos lembramos.

milkau
Enviado por milkau em 30/08/2013
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