HISTÓRIA DE UMA CANETA

    Sou um colecionador de canetas-tinteiro, tenho pelo menos umas cento e vinte, entre novas "de loja" e as chamadas antigas de colecionador. As marcas são diversas. Vale até as "genéricas" desde que funcionem e sejam bastante interessantes.
    Cheguei até a construir umas duas de madeira e de bambu , aproveitando peças de outras inservíveis à coleção, que ficaram bem bonitas e muitos colegas até quiseram adquirí-las para suas coleções. Tenho duas razões para não dispor-me delas. Uma que formam minha própria coleção, outra que foram obras minhas.
    Mas de quando em quando testo uma ou outra, até para senti-las escrevendo, uso-as por algum tempo, esvasio-as, lavo e as guardo, pegando outra. Como bom colecionador, só uso "fountain-pen", as esferográficas que vem junto no estojo, quando em duplas, eu as presenteio a alguém.
    Cada vez que pego alguma para uso, especialmente uma azul com manchas brancas como névoas, que se tem que girar a tampa rosqueada ao corpo da caneta,  me vem à lembrança, com muita saudade, de uma caneta-tinteiro que era de meu pai. Não lhe recordo a marca, deveria ser Parker, ou outra marca famosa de sua mocidade, pois  sendo antiga escrevia perfeitamente. Ela possuia uma espécie de pequena alavanca estreita e dourada em seu corpo, que se elevando pressionava um depósito de tinta de borracha. Ao soltar a alavanquinha, a tinta era sugada do tinteiro para o depósito de borracha em seu interior.
    Portanto, só pelo processo de abastecimento da tinta, se percebe a antiguidade da caneta, que hoje seria uma peça rara em minha coleção.
   
     Quando criança, lá pelos meus onze anos, tinha intensa curiosidade em saber como funcionava aquela caneta, diferente.
    Já existiam na época as esferográficas ou bolígrafas - por causa da pequena esfera de metal muito duro, encravada no suporte de escrita, cuja rolagem
faz uma tinta de impressão muito espessa impregná-la, e ao deslizar sobre o papel escrever ou desenhar. Se forem desenhos artísticos, se chamarão: bolígrafos.
    A diferença das esferográficas de quando era criança para as de hoje está apenas no material. As de minha idade escolar, eram de madeira, como se fossem um lápis e no lugar da mina ou grafite estava o tubinho de tinta. As de hoje são de plástico, tipo bic.
    Pois bem, um belo dia fui à gaveta da cômoda no quarto de papai, achei a caneta e fiquei bastante tempo olhando e matutando como seria seu funcionamento. E não é que resolvo desmontar a caneta ! Aquela raridade, com pena de ouro e tudo.
    Desmontei-a, e as peças que não saiam por bem infelizmente sairam por mal. Só pensava em desmontar. Nesse processo não entrou o: "como montá-la outra vez". Resultado; quebrei a caneta. Haviam peças pequenas que não eram desmontáveis, eram anéis folheados a ouro com finalidades estéticas. Alí não existiam roscas. Aquilo que hoje seria uma raridade - acredito que para papai era de estimação - estava irreparavelmente quebrada.
    O que faz quem "pisou na bola"? Dá um jeito ligeiro de esconder a diabrura. Bem escondida é claro!
    Ele era seleiro e sapateiro, quase não escrevia mais. Só escrevia e desenhava seus moldes de sapatos a lápis (e com uns do tipo carbono, que molhados viravam uma tinta azul) úteis para marcar o couro e as peles com que trabalhava. Era um profissional que só fazia arreamentos e sapatos novos. Não fazia consertos.Trabalhava com qualquer tipo de couro: vaqueta, cromo, atanado, "bufalados", couros com pêlos, pelicas, couro de porco e de cabras: estes, papai usava para forros dos calçados e botas e o avesso das selas (arreios).
    Os couros-crus molhava e com eles fazia as "biqueiras" e "contrafortes" dos calçados, que pela sua dureza quando secos, não deixavam os calçados se deformar.
    Papai tinha lá sua mania: só consertava os sapatos e botas que ele fazia. Os de loja, que ele chamava de "carregação" ele nem perto chegava, o freguês podia insistir. Dizia:- Calçados de carregação não tem palmilha de couro, não tem "alma", é só papelão.
    Lembrando que ele quase não escrevia mais, um dia, eu já mais velho lá pelos meus 17, 18 anos, encontrei em seu quarto sôbre a velha cômoda uma caderneta preta, e resolvi abri-la para ler. Sabia que eram suas anotações de estudos bíblicos que fizera a vida toda. Mas como todo jovem, nunca havia me interessado pelo assunto, que sabia estar contido nela. Sempre estava à vista, não era segredo. Abri como disse: - Precisavam ver que caligrafia papai tinha, parecia essas letras cursivas que temos hoje no computador. Fiquei boquiaberto. Eram as letras uniformes, didáticas, claras e plenamente legíveis como se estívesse diante de um livro impresso.
    Tive remorso, aquelas escritas foram feitas com a notável caneta que eu destruira. Aquela passagens bíblicas, as palavras de Jesus, os enígmas embutidos nas parábolas, clareados pelo seu conhecimento teológico. As letras não pareciam terem sido feitas à mão. Coisa que nunca vira, pois a calosidade de seus dedos e mãos, o impediam de formatar letras como aquelas de quando era bem moço. Sentia agora dificuldades em manobrar a escrita. Por isso usava lápis, que se errasse apagava com uma borracha macia, que dizia ser de pneu de avião "teco-teco". Tínhamos um aero-clube na cidade. 
    Saudades de papai. Ele faleceu em 1969 com apenas  63 anos. Com a medicina de hoje teria vivido mais!
    Era um autodidata teológico e  contador  de "causos", os quais sabia mesclar com a teologia, ficando sua prosa tão interessante e revolucionária, ao ponto de sua sapataria (que era em casa mesmo) sempre ser visitada por clérigos: como o Padre Ângelo, da paróquia de São Benedito, "seu" Samuel e "seu" Cruz, Presbíteros da IPI -Igreja Presbiteriana Independente -, o casal de ingleses Ronald e May - Testemunhas de Jeová -, um japonês emigrante, seu amigo, o sr. Michichi Kawama - budista -que queria que o chamassem de Carlos; e o sr. Humberto Miloni, católico "pero no mucho", pois adorava quando papai falava que São Pedro foi um cabeça dura, turrão e queixo duro, teimoso como uma mula; ele ria de fazer gosto...
    Saudade de meu pai Arnaldo, que o casal de ingleses chamavam de Arnold, saudade de vê-lo ministrando saberes sublimados àqueles teólogos de carteirinha, desejosos de beber mais da fonte. Sérios, circunspectos, mais ouvindo que falando ou perguntando.
    E quase sempre ao som clássico, barroco ou  de valsas 
ao violão de seu grande amigo, sr. Olívio Palhares, nosso vizinho de quarteirão.
     Tudo isso, papai fazia, sem parar de trabalhar. Interropia só um pouco a lida, quando o "causo" requeria alguma gesticulação.

   

 
Mauro Martins Santos
Enviado por Mauro Martins Santos em 30/08/2013
Reeditado em 30/08/2013
Código do texto: T4458334
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