Ela fez um amigo...

A verdade não dita é que ela já nem sabia o que era ter amigos. O ávido e paciente nunca teria lugar na grande capital, queria o que fosse, nada conseguiria no contexto adolescente de uma metrópole tão baladeira. "Ah, como é difícil! O que me faz não ter amigos?" Perguntava a si mesmo, olhando o ir e vir dos que se diziam tão sábios e superiores — e tal mentira, mesmo sendo um equívoco, tornava-se mais e mais uma verdade indiscutível, enquanto a verdade natural se perdia em edifícios e indústrias.

Mas ali estava o verdadeiro sábio, ali estava ele, ali! Bem mantido no conforto de sua "casa", escutando mais que falando, sentindo e ressentindo, observando e não agindo. O que poderia ela fazer, além do que aquilo que seus pais lhe ensinaram tão sabiamente: Trabalhar para o mundo como se isso fosse tudo o que de mais tem valor, aquilo que mais importa! O quê? Já duvidava disso, nem sequer conhecera os pais. Mortos estavam aqueles que lhe ensinaram o que amar, e foi isso o que os matou. Esperança, a justa que a fazia pensar nas estrelas que não via mais, ou nas praças que estivera quando jovem. Agora estava ali, presa ao contexto sensacionalista e consumista que comia tudo, até lá ao longe, além do horizonte que via daquela pequena vidraça que decorava o lugar que chamava de "Meu lar".

Por vezes lhe subia uma vontade de fugir, correr para longe, para além de toda aquela vida rotineira e moribunda, daquela gente engravatada e das crianças tão motivadas pelo impulso nada natural de procurar um par que a vista dos outros fosse agradável; sem esquecer das moças, que corriam por todas as lojas afim de gastar o que um dia fora lindo, para assim conseguir beleza. Beleza era aquela formada por linhos, aquela beleza sustentada por um corpo já tão belo. Era esconder beleza natural naquela beleza manufaturada. Ah, se essas moças, tão motivadas a serem belas, parassem para olharem-na, calma e passiva sobre o que a fazia se sentir em casa, seria diferente. Como ela era linda, uma beleza tão natural como aquela que muitas pessoas escondiam sobre justas apertadas, que contornavam o escultural corpo das moças, de propósito; não sabia direito o porquê, não lhe cabia entender. Ela estava ali! Por que não a viam? Era tão linda, por quê? Será que ela não era assim tão bonita, como pensavam seus pais e amigos? Chegava a acreditar nisso às vezes. Será que se colocasse algo para esconder seu estado natural, nu, as pessoas olhariam-na? Não havia sentido, nascera tão bela. Por que haveria de se esconder por baixo de lã e ceda? Por que não deixar que todos vissem a natureza do belo, do fruto materno? Há muito não mais entendia, foi tirada tão cedo do lugar claro e florido que encheu sua alma de alegria quando foi dada à luz; Por vezes esquecia-se de como era lindo, por vezes até, esquecia de sua família, dos velhos amigos forasteiros, e até esqueceria do vento em seu frágil corpo, não fossem as poucas vezes que abriam a vidraça, achando eles que assim o vento lhe acenderia a alma. Já não era o mesmo ar que um dia lhe varreu a solidão, nem mesmo o Sol era igual àquele que conheceu anos antes, cheio e vivo, aquele que vinha sorrateiro por debaixo do chão lá do horizonte, trazendo calor depois de uma noite fria, desabrochando todas as flores que sentiam sua doce energia. Agora era um sol triste e cabisbaixo, seu calor paterno quase não chegava à terra suja e asfaltada que destruiu vales e florestas, elas sucumbiram perante a ganância do homem. O vento era pesado e ardente, por vezes arriscava-se a dizer que preferia as vidraças fechadas, precisaria, assim, apenas sentir aquele vento artificial que saía daquele estranho objeto pregado nas paredes. Encolhia os ombros e os cabelos murchavam ao toque de quaisquer que fossem os ares daquele lugar. E quanto as estrelas, já nem se colocavam a acender para trazer luz à noite escura, e beleza ao céu noturno.

Certa vez algo lhe trouxera à tona a felicidade que outrora fugiu de seu alcance, para se perder para lá do horizonte, em grandes jardins verdes e floridos: Uma garotinha com não mais que seis anos caminhou ao seu encontro, um sorriso inocente avivava seu rosto jovem da maneira mais angelical que alguma vez já vira, parou logo à sua frente, era toda sorrisos quando a garota lhe perguntou como estava. Sua felicidade fora tanta que qualquer descrição escrita seria medíocre de minha parte, as duas conversaram por talvez duas horas, mas concordavam que poderiam ficar conversando ali para sempre. Queria que o fosse. Era para sempre.

Foi o para sempre mais curto de toda sua vida.

Já era noite lá fora quando um homem velho e cansado apareceu sorrateiro por entre a multidão, trazia várias sacolas consigo, aproximou-se e descansou a mão no ombro da criança que o olhava desapontada.

— Está na hora, Clara, há horas estamos aqui e tem sua mãe, que espera em casa. Precisamos ir.

A garota gemeu um pouco de desaprovação.

— Ela está triste. papai, não quero deixá-la!

— Quem está triste? Por Deus!

— Ela, papai. Ela não está contente com pessoas engravatadas... —

Houve um breve silêncio, a criança fitava o pai da cabeça aos pés, contemplava-o, analisava-o, e de súbito:

— Talvez pessoas como você! Por que se engravata papai?

Outro breve silêncio quebrado pelo suspiro cansado do pai!

— Clara, Árvores não sentem tristeza, não sentem alegria, dor ou amor... Árvores não sentem nada.

"O quê? Árvores não sentem nada? Não,você está errado. Nós sentimos sim, nós sentimos..."

Foi como um banho de água fria para ela, mais fria que qualquer água que já provara. "Árvores não sentem nada." Como pode alguém dizer aquilo, o que sabem eles? Não conseguia nem imaginar o que acabara de escutar, e a criança era tão jovem, escutaria o pai como antes ela o fez... Será que tudo o que seu pai lhe ensinou não passa de mentiras, como esta dita aqui? Como pode tanta gente pretensiosa, movida pelo ego, ensinar as únicas pessoas puras o suficiente para ouvi-la chorar, que não se deve assim o fazer, não se deve escutar? Aquela alegria que reaparecera com o sorriso da criança mais uma vez lhe fugiu dos braços.

O homem, mesmo arrogante em suas verdades, consentiu. Viu aquilo como o que pensava a própria filha. E soltou um suspiro frente às duas crianças que ali plantadas estavam, pasmas.

— Ah, filha... Mas sei que se essa pequena árvore escuta, garanto-lhe que nada lhe trouxe mais alegria que conversar com você, minha pequena flor. Agora vamos para casa, temos outra flor para cuidar lá.

E foi só.

Nisso estava ele certo, foi a coisa mais feliz que lhe aconteceu desde que foi mandada para lá. A garotinha talvez não entenderia, mas o olhar paterno do homem a fez entender, algumas pessoas não são o que são por gosto, e sim por dever. Dever de manter sua pequena flor desabrochada e feliz, dever de cuidar para que seu próprio jardim continue ali, vivo, lindo. Mas o faziam da forma errada, pois sabia que sua família sempre isso fizera com perfeição, apenas tirando o necessário do chão que lhes dava assento. Era essa a diferença, o ego e a ganância de uns e a totalidade e simplicidade de outros. Mas viu ali que não era o fim daquela tão complexa gente; viu amor, viu afeto, viu carinho... E viu o que nunca mais veria, a segurança que um pai dá ao filho ao abraçá-lo.

Ela não viu apenas escória, mas sim diferenças, complexidade, e o mais importante: Como essa gente luta pelos seus ideais, sejam eles quais forem. Agora sabia o que era ter amigos, porque ali fizera um... que levaria por toda a vida.

E a pequena árvore, pela primeira vez em muito tempo, viu esperança.

Daniel Reis
Enviado por Daniel Reis em 30/08/2013
Reeditado em 20/03/2015
Código do texto: T4458279
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