QUASE MATAMOS O LOBISOMEM

Eu tinha de 10 pra 12 anos quando decidi que mataria o lobisomem!

Pareceu-me perfeitamente natural fazer isto, afinal nos filmes e em todos os meus gibis matar lobisomens era coisa corriqueira sempre feita por velhos, adultos e crianças.

Não fui eu quem descobriu o dito ser, foi meu amigo Derci (na época eu já achava o nome dele muito estranho, mas não me ocorreu ser nome de menina ate conhecer a Derci Gonçalves), ele apareceu na minha casa numa certa tarde depois da escola e tinha uma estranha expressão no rosto. Estava pensativo, encafifado mesmo.

Desacostumado a esta atitude vinda dele eu o interroguei sobre o que se passava, e Derci me saiu com esta.

-Passei na casa do alemão (alemão era na verdade um menino loiro chamado Roberto) hoje pra pegar meus gibis com ele e quando veio me entregar ele tava com a cara toda vermelha e tinha sangue nos dentes... muito esquisito.

Aquilo claro me encafifou também, sangue na boca? Do alemão? Tinha coisa ali... ha tinha sim.

Fiz mais perguntas que meu amigo não soube responder, como não fiquei contente com as respostas, disse a ele que pretendia investigar.

- Mas investigar como? – perguntou Derci incrédulo

Naquela hora eu dei apenas um sorrisinho assim bem pequeno e maléfico, PÔ ele estava falando com o menino que havia sido o morcego colorido (não sabe do que estou falando? Leia a crônica EU FUI O MORCEGO COLORIDO, na minha pagina) a carreira de super herói naufragou, mas eu ainda tinha meus dotes de detetive ne?

Fomos ate a casa do alemão, chegamos la olhamos um pouco pra ela ambos quietos, nada demais ali uma casinha pequenina uma “meia água” e nada mais, então chamamos.

- Robertoooooo, ooooo Roberto! Nunca o chamávamos de alemão na hora de gritar em frente a casa dele seria grave descortesia com os pais dele ne?

Demorou um pouco, mas alemão apareceu,fiquei observando ele descer as escadinhas da porta da frente e vir ate-nos na frente do quintal, caminhava naturalmente, o rosto de fato estava mesmo vermelho e não parecia um pouco inchado? Claro que parecia!

-Oi não posso sair de casa agora- foi logo nos dizendo

Derci ia falar algo, mas eu fui mais rápido e falei primeiro.

-Ha tudo bem, só queria saber se você mais tarde vai aparecer la no campo?

Alemão fez um cara de quem pensou um pouco no assunto e depois respondeu com jeito penoso

-Não hoje não, nem amanhã talvez depois de amanhã.

Ouvi tudo prestando muita atenção e achando tudo muito estranho, não deixei derci falar mais nada me despedi por nos dois e fui logo indo embora, Derci atrás de mim vinha com cara de paspalho e bem irritado.

-Tu não ia investigar? Não ia? Não investigou nada, não sabe de nada. Esbravejou ele.

- Há, mas você esta muito enganado sobre isto sabia? Eu descobri tudo já!

Se antes a cara dele era de paspalho irritado, agora era de cão que caiu do caminhão de mudança.

-investigou? Descobriu?- descobriu o que? Investigou onde?

-Vamos para o nosso campinho la e mais reservado cara, e te conto o que eu descobri!

Eu estava adorando a cara curiosa e aborrecida dele, como era bom ser o cara que sabe das coisas hehe.

No campinho sentados na grama surrada eu não fiz mais mistérios e fui logo abrindo o jogo.

-Me diz Derci que lua teve ontem à noite?

Ele pensou um pouco achei que não ia saber, mas por fim...

-lua cheia- respondeu e já ia continuar falando quando eu o detive com a mão

-E esta noite também vai ser lua cheia né? Depois desta noite e que a lua muda não to certo?

Ele concordou sem entender bulhufas, e eu prossegui.

-Agora pensa hoje mesmo na escola a gente não tava falando que cachorrada do bairro tava toda louca estas noites passadas? Fazendo um barulhão e ate uivando?

Ele só assentiu com a cabeça

E pensa também alguma vez você viu o alemão ficar ate escurecer na rua com a gente?

Ele apenas negou com a cabeça

E pensa de novo, hoje você vai a casa dele e ele ta vermelho e com sangue na boca, fomos la agora pouco e eu vi que ele ta mesmo não só vermelho, mas inchado e vi sim sangue na boca dele, e ele não quer sair de casa nem hoje nem amanha... o que isto te diz? Han? Han?

Derci pensou um pouco enquanto eu esperava impaciente

-Tu acha que ele caiu de noite e machucou a boca olhando a lua e por isto ele não quer sair de casa ate a lua cheia ir embora?

Eu respirei fundo, beeeeem fundo ser esperto nunca foi uma qualidade notável do meu amigo, e com muito tato esclareci a minha descoberta!

-Não sua mulaaaaaaaa o alemão é um lobisomem!

Derci precisou de uns dois minutos pra digerir aquela afirmação! Vi a coisa se desenhando no rosto dele, primeiro surpresa, depois duvida, depois... certeza!

-PÔ claroooo bem que eu nunca gostei daquele alemão desgramado - exclamou exultante

-Pois é - continuei eu agora me sentido ainda mais sabido-ele sai à noite quando vira o bicho e deixa a cachorrada maluca deve ate atacar e brigar com os cachorros por isto ta inchado e sangrando na boca, e por isto não quer sair de casa mais nestes dias e muito menos a noite.

-Sim e ele não foi à aula hoje ne?-Derci parecia agora mais do que nunca convencido

-Não foi e quer apostar como não vai amanhã também? Cuida se hoje à noite a cachorrada não vai ta doida de novo.

Ficamos em silencio um tempo absorvendo o que havíamos acabado de falar, Derci falou primeiro.

-Cara nunca mais brinco com o alemão

Eu o olhei naquele momento e me senti como um cientista diante do homem das cavernas havíamos “descoberto” um lobisomem ali no nosso bairro e tudo o que ele tinha a dizer era “não vou mais brincar com ele” haaaaaa eu queria gritar

-Não brincar com ele? – perguntei indignado, a gente vai é mata-lo.

-Tu ta doido? Matar? Nos dois sozinhos?

-Lógico que nos dois e lógico que sozinhos ou tu e maricas?

Perguntar se um amigo era maricas naquele tempo era o mesmo que por uma faca nas costas dele, todo mundo ficava encurralado diante desta questão, eu já tinha visto um monte de garotos entrarem nas maiores roubadas sós por que o outro o perguntou... tu é maricas? Eu mesmo já fizera muitas besteiras pra não ser maricas. Derci me lançou um olhar furioso e grunhiu a resposta.

- Eu não só maricas, a gente mata ele lógico que mata!

Depois mais baixinho perguntou

-Mas como?

-Ainda não sei... vou pra casa pesquisar direitinho como se mata o lobisomem, mas sei onde vai ser, vai ser aqui no campo que e afastado e ninguém pode ver

Derci concordou de ma vontade, ele não era maricas, mas tava com o perdão da má palavra se borrando de medo mesmo assim! Mas ao mesmo tempo também estava determinado

-Bom da pra matar com bala de prata!- afirmou ele um tanto inseguro

-Da sim, mas onde a gente vai arrumar bala de prata e mais importante que tudo um revolver?

Ele não respondeu, sabia que a gente não tinha como conseguir tais coisas.

Fomos pra nossas casas, eu tomei banho apressado jantei e fui logo me enfiar no quarto fazer a “pesquisa”, no meu caso estando eu anos luz da invenção da internet e ainda mais distante dos dias em que eu teria um computador pesquisar significava reler todos os meus gibis de terror com historias de lobisomem. O que fiz com afinco noite adentro

Eu ia à escola pela manha, tanto eu quanto Derci quanto o alemão, e vou pular os acontecimentos da escola nesta crônica por que nada de relevante aconteceu a não ser o fato de que acertei e o alemão não foi à aula.

Na escola mais de uma vez Derci me perguntou se eu já sabia como faríamos e eu disse que só conversaríamos a tarde e no campo.

Quando após o almoço cheguei ao campinho ele já estava la e veio logo pra cima de mim perguntando

-E então? E então?

Fiz sinal pra ele sentar e fui direto ao ponto bem resumidamente

-Olha só da pra matar lobisomem com bala ou faca de prata, com água corrente ou se você também for um lobisomem ou vampiro. E lobisomens tem medo de chicotes!

-Mas... mas então não da pra gente matar ele a gente não tem prata – choramingou meu amigo

-Calma, eu disse que só da pra matar o lobisomem assim, mas acontece que numa revista que tenho as pessoas esperam o lobisomem virar gente de novo e matam ele como humano e daí pode ser com qualquer arma entendeu?

Derci entendeu claro que entendeu, mas na cabeça dele passava o mesmo que na minha, matar ele quando estava como menino? A gente tinha esta coragem?

Instintivamente eu sabia que tudo isto se passava na cabeça dele e afirmei!

-É o único jeito, alguém tem que fazer isto se não ele ainda ataca nossas mães já pensou? E a gente vai ser herói!

-É a gente vai ser herói o rosto do Derci se iluminou com esta ideia

Eu prossegui.

-E tem mais, talvez não seja o caso de matar, quem sabe se a gente machucar ele bastante deixar ele com medo ele não vai embora daqui pra sempre?

Esta ideia tinha mesmo naquela minha tenra idade todo o trejeito de meia culpa, mas nos dois nos agarramos a ela.

E começamos os preparativos, confeccionamos porretes grossos de madeira e chicotes como pedaços velhos de couro, também reformamos e melhoramos nossos estilingues e separamos nossas melhores bolinhas de chumbo pra usar neles, por fim cada um estava afiando seu próprio facão de longe a arma mais perigosa que tínhamos.

Falávamos animados sobre como faríamos e das glorias que teríamos, quando a mãe do Derci o chamou para manda-lo ate o mercadinho fazer uma compra, em geral eu iria junto, mas como estávamos em preparativos ele foi só com a bicicleta dele e eu fiquei a ajeitar o equipamento, ir e voltar foi coisa rápida, mas quando chegou em casa com as compras eu notei que Derci demorou a aparecer e pensei que ele estava fazendo um lanche. Um pouco depois voltou e tinha preocupação no rosto!

-Rodrigo, falei com minha mãe sobre lobisomens sabe? Só pra ver o que ela dizia, e ela me contou que o lobisomem é sempre o sétimo filho que um casal tem.

Derci nem precisava dizer mais nada eu já entendera tudo, mas ele prosseguiu com gravidade.

-O alemão é filho único cara, como ele pode ser lobisomem? Ele não é a gente não pode matar ele.

Dizendo isto sentou a meu lado desolado.

E desolado eu também fiquei, vocês compreendem a minha situação? Há MÃE dele havia dito isto, e palavra de mãe naqueles tempos era sagrada, ninguém contradizia a sabedoria da mãe de um amigo a não ser sobre graves consequências e sem duvida o fim da amizade.

Não seriamos mais heróis, mais uma vez a fama e a fortuna roubadas de nos, a gente não ia mais sair no jornal da cidade e ate na Zero Hora.

Foi quando meu cerebrosinho irrequieto viu a luz... ou alguma outra coisa tão útil quanto .

-Mas espera Derci espera quem disse que ele é filho único?

Meu amigo me olhou daquele jeito que a gente olha quando esta diante de alguém que considera um perfeito idiota, e com voz muito expressiva falou devagarzinho como que por medo de que eu não entende-se caso falasse normalmente.

-Ele é filho único, só mora ele e os pais deles, ele disse que só teve uma irmã que morreu pequenina lembra?

Eu me permiti um sorriso triunfante.

-isso mesmo, ELE disse, já viu a mãe dele ou o pai dele falarem que só tinham ele e esta maninha falecida de filho?

Derci entendeu onde eu queria chegar e negou com a cabeça já com certo brilho no olhar embora ainda com duvida

-Pois é ele é quem diz isto, mas pensa bem, ele mudou pra Ca não faz nem cinco anos, veio La do interior longeeeee pra caramba no meio do mato, disse que seu pai tinha terras la, por que vir aqui morar numa casinha de nada na cidade?

Não era uma pergunta a serio mesmo assim Derci já ia responder sabe Deus o que, mas não lhe dei chance.

-Te digo por que, por que ele tinha sim e seis irmãos e não uma irmãzinha só e ele era o mais velho o sétimo, os pais morando la nos cafundós confiavam que ele podia tomar conta dos pequeninos e devem ter saído pra algum lugar numa noite de lua cheia destas deve ter virado lobisomem e comido todos os irmãos.

Meu amigo já estava animado de novo, mas ainda assim questionou.

-Mas e os pais dele? Eles iam ficar assim tranquilos com um filho lobisomem que come seis filhos deles?

Eu novamente me enchi de orgulho de minha “inteligência” ao responder esta

-Derci tu é bobo mesmo? Acha que ele ia os deixar saberem? Aposto que ele se escondeu em algum lugar, ate os pais voltarem sei la de onde eles foram ele apareceu dizendo que bandidos tinham matado os irmãos e só ele sobreviveu, daí muito tristes eles vieram morar aqui pra não ficar mais la.

-Sim, sim e isto tu ta certoooo ele e lobisomem gritou meu amigo.

Detalhes como o fato de que nosso jovem lobisomem tinha nossa idade e, portanto ser o mais velho de sete irmãos significava no mínimo criançinhas muito pequenas pra qualquer mãe que se presa largar com ele sozinhas à noite, ou o fato de como hoje em dia esconderia ser lobisomem dos pais morando numa casinha em bairro residencial não passavam na cabeça do Derci, e que droga nem na minha tudo parecia perfeito.

E muito animados seguimos preparando as armas para o grande dia, nossos chicotes estavam bem fortes nossos porretes eram robustos, e eu havia trazido escondido do meu pai duas facas com cabo trabalhado em metal que eu achava que davam ate pra enganar o lobisomem que eram de prata vai que ele acreditava e morria assim mesmo?

Era quinta feira à tarde e já havíamos decidido que o grande dia seria sábado, iríamos à casa do alemão e o chamaríamos pra brincar no campo, la teríamos nossas armas escondidas e atacaríamos de surpresa.

Estávamos muito ansiosos, na manhã de sexta durante as aulas nos olhávamos a todo o instante, nosso lobisomem não havia ido à aula de novo o que nos deixou satisfeitos, na escola não falávamos a respeito de nossa missão nem falávamos no caminho pra casa, combinamos que só se tocava no assunto no campo.

Voltamos juntos pra casa como sempre tentando falar de amenidades, e, frente a minha casa nos despedimos.

-Ate daqui a pouco no campinho – disse Derci na despedida

Eu só acenei positivamente com a mão e entrei em casa

Após o banho fui almoçar, minha mãe fez as perguntas de sempre sobre a aula, e eu meio aluado mal respondi foi então que tive a ideia de falar com ela sobre lobisomens, queria ver o quanto ela ficaria orgulhosa de um filho matador de monstros.

-Mãe, se alguém daqui matar um lobisomem vai ser famoso não vai? Vai sair no jornal na TV e tudo não é verdade? Perguntei a queima roupa entre uma garfada de outra.

Minha mãe que estava lavando a louça parou um pouco o que estava fazendo pra me encarar, não gostei do que vi naqueles olhos, tinham a velha expressão que dizia, ”senhor o meninada besta esta”, mas quando respondeu ela o fez com brandura.

Irritante brandura alias

-Isto de lobisomem não existe menino, e besteira coisa de filme e destes teus gibis bobos.

Minha mãe falou calma e bem natural e seguiu na sua louça, nem notou o choque que me provocou Minha mãe estava dizendo que não existe lobisomem? Não se contrariava sabedoria de mãe lembra?

Fiquei por instantes sem saber o que dizer, desarmado, mas me agarrei ao ultimo recurso que tinha e balbuciei a beira do gaguejar.

-Mas mãe a vó sempre fala que existe lobisomem que ela viu e tudo.

Minha mãe não se deixou perturbar nem sequer virou-se para me olhar desta vez apenas respondeu imperturbável

-Isto é la coisa do tempo dela guri, la muitos anos atrás, agora não existe isto não existe mais nada disto e pronto.

Terminei meu almoço em silencio e fui para o quarto. Deitei na cama e fiquei olhando pra prateleira na parede com meus gibis, era o fato final, a verdade inquestionável, lobisomem não existia minha mãe tinha declarado e então era verdade.

Em minha mente eu via o rosto do alemão, no fundo eu não achava que a gente podia conseguir atacar aquele menino, afinal era isto que ele era um menino como a gente, e estávamos falando em atacar ele como menino não como monstro, mas ver nossos planos assim desmoronados doeu no meu coração de criança.

Quando fui ao campinho como sempre Derci já estava la.

Creio que ele também percebeu rapidamente pela minha cara que algo não ia bem, eu o informei logo e sem rodeios do que minha mãe dissera e declarei por fim que sendo assim alemão não era lobisomem e não podíamos mais ser heróis.

Eu vi a revolta desenhar-se no rosto dele, vi frases de protesto quase saltarem de sua boca, mas por fim... por fim mãe sempre sagrada né? E Derci deu-se por vencido também sentando a meu lado muito desanimado.

Não se falou nada por muito tempo apenas olhávamos o mato que cercava o campinho.

Quem falou primeiro foi Derci.

-Ei vamos jogar taco? A gente já tem os bastões! E ao dizer isto apontou para onde havíamos escondido nossos porretes!

-Vamos! Concordei animadamente, já feliz por que teriam utilidade!

-Precisamos de mais duas pessoas ponderou Derci.

-Fácil! Respondi. Convidamos o Marcio e o alemão!

Derci me olhou nos olhos por alguns segundos, uma fugaz lembrança de nossos planos naqueles olhos tenho certeza e então mais nada a não ser animação!

-Então vamos ate o alemão primeiro.

E la nos fomos, uma tarde quente de jogo de taco para desfrutar.

Oh bons tempos aqueles em que ate o mais disparatado sentimento era tão puro e infantil que podia ser superado e esquecido em segundos.

Bons tempos... saudosos tempos.

PS. Algum tempo mais tarde descobrimos que o rosto inchado e o sangue na boca do alemão se deviam a extração de um dente que vinha doendo muito. O que também explicava suas faltas na escola, os porretes por semanas foram os melhores e mais disputados tacos de jogo de toda a nossa quadra e o episodio do lobisomem deu origem a agencia de detetives parquinho que tinha como membros o alemão o Derci e eu!