Vozes na mata
VOZES NA MATA
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 28.08.13)
Não é brincadeira não, de fato tenho ouvido vozes na mata, o que significa que algo está se passando ali. Vozes humanas, obviamente.
Pensei em abordar o assunto - que me parece grave -, mas outras coisas estão acontecendo por aí. Coisas, aliás, nunca param de acontecer. Por exemplo: Avaí e Figueirense venceram seus jogos do final de semana na Série B apenas para ficarem no mesmo lugar em que já se encontravam, respectivamente a 9ª e 8ª colocações. De forma idêntica, mesmo com vitórias, ambos continuam a quatro pontos do G4, o grupo dos quatro melhores que se promovem à Série A de 2014. No entanto, contraditoriamente, suas distâncias em relação a cada um dos três primeiros na tabela reduziram-se em três pontos, posto aqueles três haverem perdido suas partidas - e todos por um a zero fora de casa. Poder-se-á concluir, então, que está mais fácil os dois clubes da Ilha serem campeões da B do que subirem para a A?
De qualquer forma, isto não parece grave. Pelo menos, não muito grave. É preferível mesmo ser campeão do que não subir.
Mas há assuntos sérios na pauta destes dias que correm. Nunca, por exemplo, se discutiu tanto saúde no Brasil, desde saúde pública até saúde sofisticada, desde o atendimento às populações geográfica e/ou socioeconomicamente marginalizadas até os requintados exames revestidos de altíssima tecnologia, desde a prevenção básica até a prescrição de medicamentos de ponta, novíssimos e caríssimos, que fazem a festa dos laboratórios farmacêuticos multinacionais. Motivos dessas discussões, os médicos estrangeiros, muitos com mais de 50 e 60 anos de idade, começam a chegar de Portugal, Espanha e Cuba, hostilizados por colegas daqui, para trabalhar onde não estão profissionais brasileiros. O presidente do CRM mineiro foi grosseiro ao dizer que chamaria a polícia para denunciar exercício ilegal da profissão pelos adventícios e arrogante ao assegurar que "não vamos consertar os erros dos cubanos".
Para o bem deles, alguém precisa contar aos nossos doutores que, independente de terem razão - ou não - em suas queixas, seu comportamento está sendo visto pela opinião pública em geral como antipático, elitista, corporativista e desrespeitoso à população brasileira.
Não é só, entretanto. A cada dia revelam-se imensas baixarias sobre a vergonhosa espionagem eletrônica universal pelo governo dos EUA. Respeito aos direitos humanos só vale se o sujeito for estadunidense; eles dizem que é isso o que reza a lei deles. Sequer seus mais ferrenhos aliados europeus têm sido poupados de verem sua comunicação bisbilhotada; eles entendem que tanto a internet quanto o conteúdo da internet são propriedades deles, o quintal onde podem fuçar à vontade.
Há também a declaração enfática e sensata do peruano Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura, em artigo para jornal: "a delinquência associada à droga desaparecerá somente quando o seu consumo for legalizado e as enormes somas atualmente investidas em combatê-la forem gastas em campanhas de reabilitação e prevenção".
Com tudo isso - e apesar de parecer assunto suficientemente grave -, como falar de vozes que ouço escaparem da mata que compõe o manguezal do Itacorubi, vozes que se intercalam com vacas pastando, galinhas ciscando e perdizes bicando? Vozes sorrateiras, mas claras, que se intercalam com áreas mais e mais descampadas e com o lixo crescente de plásticos e vidros e tecidos como a indicar a destruição progressiva, intencional e cada vez mais rápida do mangue?
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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados, alguns dos quais à venda no sítio da TECC Editora, em http://www.tecceditora.com.
"Janeway Smithson estava naquele trabalho havia vinte e cinco anos e era estúpido o suficiente para se orgulhar disso."
Charles Bukowski, "Factótum"