A paixão da Lapa

Na sexta-feira passada, quando eu passava pelo Largo da Lapa, vi uma multidão concentrada em torno de um homem. Pensei se tratar de um ladrão casual ou mais uma daquelas multidões da Lapa que se juntam sem sentido. Bem, nada é sem sentido na Lapa. Desde o choro de um bebe até às lamentações shakespeareanas dos mendigos nada é sem sentido. Como já disse um escritor, na Lapa se dá o encontro do sagrado e do profano. E esses dois se misturam tanto, que as vezes, o profano corteja o sagrado e este o profano.

Não era um ladrão. Era um homem que apresentava algumas idéias politicamente incorretas. A Lapa, que está se tornando um antro do politicamente correto, anda com desejos diferentes. Desejos tão estranhos à natureza das gentes que tentam te dominar, que chega a ter algumas atitudes mais esdrúxulas. E a mais atual era aquela que eu contemplava, bem ali, embaixo dos Arcos. Arcos que já fora testemunha de tantas mudanças na Terra de São Sebastião.

Lembro certa vez, que um senhor me pediu uma contribuição financeira para uma de suas musas ideológicas ultrapassadas. Não que ela pertença ao passado, mas as suas idéias sim. Cadáveres andantes revoltados e rancorosos com a vitória dos vivos.

Perguntei a um velho que tentava, na ponta do pé, ter uma boa visão do espetáculo do Largo. “O que está acontecendo?” “É esse sujeitinho, aí. Metido a sabedor das coisas. Será que ele pensa que somos trouxas e vamos cair nessa ladainha tosca dele?” Desisti de tentar entender as coisas por intermédio daqueles que não conseguem explicar sua insatisfação de maneira humana. Tentei me aproximar do indivíduo que agregava tanta gente raivosa. “Mas será que palavras podem ser mais perturbadoras que ações? É a palavra mais violenta que a própria violência física?” Consegui, enfim, chegar até o homem. Era um jovem. Um jovem que acreditava em sonhos. Um jovem que acreditava na vida. Não em sonhos utópicos, mas sonhos que revelam o caminho ideal a ser seguido. Não numa vida que não ultrapassa a rotina do dia-a-dia, mas a vida real, cheia das potencialidades de cada um.

O que mais assustava a multidão era a sua eloqüência. Ele conseguia convencer todos. E isso perturba os homens acomodados. Ele entendia que a opção pela verdade era algo perigoso, pois a verdade em nosso mundo é algo que devemos esconder ou possui-la em absoluto. Tanto o que esconde quanto o que a possui tiranicamente têm medo dela. E ali não havia divisões, era uma negação em absoluto. Ele ensinava que morreria pela verdade. E todos aqueles que não estão prontos para morrer por ela são covardes. Pois preferem o engano a verdade. O engano é seguro, rotineiro, costume. A verdade exige postura, compromisso, bravura.

Um jovem de blusa vermelha e armado de suas ideologias rotineiras, bravejava em sua direção. Insultava-o. Jogava a multidão contra ele, pois este expediente é muito usado por esse tipo de pessoa. Eu, como um filho de meu tempo, afastei-me. Tive medo do que aquela turba acéfala, dominada por discursos ideológicos do engano, poderia fazer. Afastei-me até uma posição segura. Poderia ter ido embora, mas o desejo de ver o desfecho daquele espetáculo do caos não deixou. A sedução do mal é implacável. Mas nesse evento não era só o mal que me seduzia, mas aqueles olhos certeiros, aqueles olhos de súplicas, aqueles olhos aterradores da verdade me congelaram. Era como se eu visse o meu auto-julgamento. Não resisti mais e fiquei até o fim.

Um moleque, em troca de uma moeda qualquer, jogou-lhe uma pedra certeira. O jovem de vermelho usou o sistema que funciona para apresentar o que não funciona. Usou a máquina do triunfo para depois impor a pedra que tudo assola. Porque até mesmo o sistema que nos garante a vida pode ser usado contra si mesmo nos levando à morte.

Aquele sujeito não tinha medo da morte, porque ele acreditava demasiadamente na vida. Agora já era uma centena de jovens com blusas vermelhas. Qual um exército, atacavam sem compaixão aquele sujeito, que até então não tinha ouvido falar nada que pudesse ser repreendido. Ao contrário, ao ouvi-lo, senti pela primeira vez, esperança. Mas, eis que a esperança estava sendo apedrejada na minha frente. Alguns homens que estavam ali, homens sem uniforme, sem bandeira, sem sistemas me convidaram para ajudar o infeliz. Aqueles homens não eram anarquistas, mas estavam atrás da verdade. Mas quando decidimos, já era tarde. “Parem! Ele tá morto!”

Chegou a polícia. Levaram o corpo. A turba vermelha se dispersou e ninguém foi testemunha de nada. O medo voltara ao seu estado natural. O engano novamente se apossara de seu terreno. E ficamos todos calados.

Lembro que no Sábado, ninguém mais falava sobre o ocorrido. Mas nunca esqueci do Domingo. Ali mesmo, naquele lugar que se deu o ocorrido. Vi um sujeito parado embaixo dos Arcos. Ele virou e disse-me: “Siga-me!”

10/04/07

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 11/04/2007
Código do texto: T445503
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.