Três mortes
Morreu enquanto lavava o carro. Ficou lá caído por uns 20 minutos até que uma bendita alma lhe encontrasse ensopado pela água da mangueira que ele insistia em segurar sobre o rosto. Se não tivesse morrido pelo infarto, teria se afogado e se não houvesse infarto, nem afogamento, teria terminado de lavar o carro com o metodismo usual. Depois de lustrar e caprichar em cada detalhe, colocaria o carro outra vez na garagem. A mulher provavelmente já estaria anunciando o almoço e talvez, um ou dois filhos viessem almoçar. Com o sentimento de que seu carro seria melhor companhia, ele se sentaria à mesa. A conversa lhe atingiria feito ondas marítimas que a cada ida e vinda avançavam mais na direção dele. Ele não revidaria as investidas das ondas, pelo menos, não em voz alta. Embora houvesse silêncio, seus pensamentos imperdoáveis fuzilariam cada um dos orgulhosos comentários do filho mais velho ou os palpites sem sentido do caçula. O que a esposa falava ele preferia ignorar, aquelas ondas não tinham força o bastante. O almoço, por benção divina, estaria bom. Adorava frango com batatas e se aquela fosse sua última refeição, não se importaria, estava delicioso. Depois do almoço, se deitaria apenas esperando alguma coisa acontecer. Os domingos quase sempre são assim, uma espera eterna enquanto dura e amarga, quando está para terminar. Na verdade, o fim quase sempre é amargo.
Morreu naquela manhã, quando todos os aparelhos do CTI começaram a apitar. Já havia chegado a hora e já havia resistido demais a todas aquelas dificuldades que teimavam em não lhe deixar viver. Envelhecer é um pouco disso, envelhecer é acumular mais dificuldades até que não aguentamos mais e nos entregamos à morte. Se não tivesse morrido daquela forma e se tivesse conseguido driblar todas as dificuldades e ido pra casa mais uma vez, certamente estaria pensando no que prepararia para o almoço. Primeiro iria à feira da rua de cima comprar legumes e verduras para a salada, pensaria em preparar uma macarronada com o talharim que comprara no dia anterior e, com toda certeza que possuía, faria um frango assado, talvez, dois para que não faltasse para os filhos que viriam almoçar. Todos comeriam com fartura, lambendo os beiços, os dedos e os pratos. Os netos terminariam de comer antes de todos e começariam sua brincadeira de correr ao redor da mesa, enquanto a avó acharia aquilo a coisa mais divertida que pudesse existir. No dia seguinte, a avó intimaria um dos filhos para levá-la às compras de natal, o que já estava planejando há alguns dias. Compraria presentes para todos, mesmo que fosse um par de meias ou uma cueca. O que importava era o sorriso que dariam quando abrissem o embrulho. Em seus dias, ela nunca pensou em morrer, embora soubesse que morreria. Afinal, para morrer não é preciso pensar.
Foi fazer uma cirurgia para tentar endireitar as coisas e morreu. Nem percebeu que estava morrendo, porque pensava estar melhorando, mas morreu, infelizmente morreu. Se tivesse sobrevivido e aquela decisiva cirurgia tivesse sido o sucesso que não foi, ele teria sido mais feliz do que jamais fora. Comeria tudo que há anos lhe foi proibido, comeria de olhos fechados, sem culpa ou remorso. E se alguém viesse resmungar que aquilo tudo era demais, simplesmente comeria mais um brigadeiro para a pobre alma daquela pessoa. Depois do dia dos brigadeiros, viria o dia do sorvete, do bolo, das balas, dos bombons. Em cada um desses dias, seria feliz por ser livre, uma liberdade de que talvez nunca tenha tido antes. Liberdade para tomar quantos sucos quisesse e sucos com gelo e açúcar, sem medo e sem remorso. Ele dormiria onde quisesse. Passaria noites e mais noites nas casas dos amigos, nas baladas, nas farras e tudo sendo simplesmente feliz. Mas ele morreu. Pelo menos, morreu com alguma esperança.