CRÔNICA – Nossa única verdade – 25.08.2013
 
CRÔNICA – Nossa única verdade – 15.08.2013
 
          Estávamos nos idos de 1955, tempos bons que não voltam mais! Fazia a quarta série primária no Grupo Escolar Maciel Pinheiro, aqui no bairro da Encruzilhada, na Estrada de Belém, Recife, que guardo no meu “caquinho” de coração. Pra falar a verdade, nem mais sei se essa escola ainda funciona, mas o que custa passar por lá e verificar “in loco” esse detalhe, pergunto-me a mim mesmo, mas vou fazê-lo. Nem mesmo no Google achei algo a respeito do prédio.

          Na verdade, no ano anterior, quando estava na terceira série, fiz algo que revoltou a minha professora e a direção da escola: Eu me apaixonara, assim sem mais nem menos, por uma aluna da minha classe, de nome Carmita, a loira mais linda que até então havia visto na vida, que residia bem juntinho daquele estabelecimento, que era de propriedade do governo estadual.

          Pois bem, ao final da aula, meio dia em ponto, eu a segui sem que ela me visse, e assim que entrara em casa eu coloquei um bilhete por baixo da porta, dirigindo-me àquela deusa, dizendo-lhe de minha imensa paixão. Imagine-se aqui como seria tal sentimento de uma criança por outra, isso naquela época em que a educação era diferente em todos os níveis. Claro que não tive a coragem de dizê-lo pessoalmente, cara a cara, como se diz na gíria, até mesmo porque a minha timidez de menino pobre, sofrido, que ia às aulas com uma roupinha remendada aqui e acolá pela sua mãe dedicada e cuidadosa; quase sempre alimentado por um rico café da manhã, de pó reaproveitado, regado a pão dormido e sem manteiga.

          O que aquele famigerado bilhete dizia eu não me lembro, evidentemente, em seu todo. Mas não escapa da minha cabeça o zum-zum-zum que deu no outro dia: Fui chamado às pressas pela professora Yolanda a comparecer ao gabinete da diretoria. De par com o tranco que levei, fui transferido para outra turma, no turno da tarde, certamente como punição para da Carmita ficar distante. Expulsar-me da escola seria difícil, eis que bom aluno em todas as matérias, alternando a cada mês um primeiro ou segundo lugar da classe. Fiquei completamente mudo e envergonhado, mas ali eu já demonstrava a minha condição de que seria um homem de verdade.

          O pior de tudo é que não sabia do grande sentimento que por ela nutria o colega Antônio Carlos Coentro, garoto mais afortunado da turma, todavia não posso dizer claramente se a recíproca era verdadeira, porém tinha tudo pra sê-lo. O certo é que de mim se afastara quando soube do ocorrido, que para mim passou a ser simplesmente um sonho irrealizável, um amor impossível...

          Final de ano, aproveitado com as melhores notas, agora sob a batuta da grande senhora Débora da Rosa Borges, mestra da maior qualidade, delicada, sábia, de família tradicionalíssima de Pernambuco, se não me engana a memória, da zona canavieira, que comandava a economia estadual. Sua família era possuidora de um enorme engenho de açúcar e rapadura no grande Recife. E na quarta série voltei a ser seu aluno, com muita honra, e dali em diante não mais me apaixonara por ninguém na escola, embora o pensamento na Carmita permanecesse vivo em minha cachola.

          Lembro-me que disputava de forma renhida com o aluno Walter Varejão, de família requintada e de boas posses. Essa rivalidade sadia me levava a estudar cada vez mais, até que meu pai fora chamado à escola para uma conversa com a diretora, cujo nome me falta no momento. Fora ele alertado que eu estava para ganhar um prêmio pelo meu desempenho, bastando que na prova final eu desse prosseguimento àquelas notas que vinha obtendo a cada mês.

          O meu pai era um operário dos Grandes Moinhos do Brasil, que ficava no cais do porto, e trabalhava no restaurante daquela imensa fábrica de beneficiamento do trigo, que era importado da Argentina ou dos Estados Unidos e Panamá. Aliás, essa era a salvação da minha família, porquanto o nosso almoço somente acontecia quando ele retornava da labuta, por volta das 16.00 horas, todos os dias. É que, devidamente autorizado pelos seus chefes, trazia ao lar os restos daquela comida maravilhosa, de um tempero fora do comum, quando fazíamos a nossa grande festa.

          Pois bem, para encurtar a história, que já está ficando longa demais, quero dizer que não andei bem nas provas finais, justamente na de português, cujo primeiro quesito era interpretar uns desenhos que nos foram apresentados. Ora, se eu era bom na gramática naqueles tempos, justo era se imaginar que também seria “cobra” na arte de dissertar a respeito do tema proposto. Ledo engano, o Walter passou na minha frente e abiscoitou a premiação.

          O dilema seria como estudar dali em diante, eis que o meu velho não poderia pagar o curso ginasial em escolas particulares. Mas fora encontrada a solução: Fui matriculado no curso industrial básico, que correspondia ao ginasial, mas havia a obrigatoriedade de passar o dia todo na Escola Industrial Governador Agamenon Magalhães, pela manhã estudando as matérias tal qual no ginásio, enquanto à tarde se fazia um curso técnico, dentre os disponíveis. Escolhi a arte do Mestre José, pai de Jesus, qual seja a marcenaria, tanto que me formei. Sou, na verdade, também um marceneiro, na graça de Deus.

          Fazendo uma pausa, gostaria de dizer que esse cidadão (Agamenon Magalhães) foi um dos maiores líderes políticos desde Estado, bom de urna e de votos, administrador de mão cheia, tendo a sua morte comovido o povo pernambucano e por que não dizer os brasileiros...

          Mas retomando o fio da meada, quando fazia a quarta série primária, convidado fora por um amigo e colega de classe para visitar o sítio de sua família, onde dispunha de árvores frutíferas das mais variadas (azeitona, cajá, caju, manga, carambola, tamarindo, coco, goiaba, dendê, etc.). Comi tanto, em demasia, e até engolira alguns caroços, talvez de azeitona roxa, que era uma delícia, notadamente quando se subia nos seus galhos e se degustava dos frutos de forma aérea.

          O resultado desse dia inesquecível fora se manifestar à noite, com fortes dores à altura do apêndice, fato que obrigara ao meu pai chamar a ambulância do SAMDU – Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência, que proporcionava realmente inestimáveis serviços à saúde do povo brasileiro. Os governos foram se modificando e a verdade é que se apropriaram daqueles serviços, mudando apenas o nome para SAMU, num vergonhoso caso de apropriação indébita daquilo que era bom e saudável para todos nós, ricos e pobres de todas as cores e condições.

          Essa urgência me conduziu à necessidade de uma cirurgia de “Apendicite aguda”, no próprio hospital do SAMDU, ali pelo bairro do Espinheiro, Madalena, não me recordo bem. Moleque saudável, apesar das agruras da vida, tomei três pontos e fui liberado com quatro dias, pronto para novas travessuras. Isso me possibilitou a voltar às aulas, embora defasado nas matérias pelos dias que faltei.

          Mas o destino nos prega cada peça engraçada! O quarto do hospital era amplo, confortável, limpinho e para dois pacientes. Quando acordei da cirurgia, que foi feita de madrugada e que durou pouco tempo, talvez umas duas horas, fui justamente levado aos aposentos onde estava um cidadão de nome Milton, que também havia sido operado às pressas, porquanto vítima de golpes de arma branca (formão de marceneiro), em face de um desentendimento que tivera com um profissional da arte de fazer móveis.

          Meu vizinho era um homem de bem, pertencia à família Mendes Cahu (que fui conhecendo a cada visita de seus parentes), daqui de pertinho, ou seja, da cidade de Jaboatão, hoje Jaboatão dos Guararapes, em face de aqui ter nascido o glorioso Exército Brasileiro, quando das batalhas contra o inimigo holandês, que era doidinho para ser dono de nossa pátria, tanto que invadiu o Brasil por duas vezes, uma em 1624, pela Bahia, e outra em 1630, quando desembarcaram em nossa capitania, permanecendo até 1654, mas foram definitivamente expulsos do nosso território. Há pessoas que falam alto e bom som que deveríamos ter deixado à nação holandesa a tutela dos destinos do nosso país, pois alegam que o nosso desenvolvimento de hoje seria muito maior.

          Pois bem, anos depois eu fui a uma festa natalina nessa grande cidade, parte integrante da autonomia brasileira, e tive a felicidade de conhecer a mais bela mulher deste planeta, a Jane, da família Mendes Cahu, minha querida esposa, companheira de todas as horas (eu não sei como ela me aguenta há tantos anos!), que morava justamente com sua família naquele município tão desenvolvido. Cobiçada na época pela maioria dos rapazes de lá, dona de uma reputação inabalável, também pobre como eu, na graça de Deus.

          E quem era a Jane? Nada mais nada menos do que sobrinha do meu querido companheiro de quarto no hospital, o Milton, que ontem falecera pela madrugada, deixando-nos deveras tristonhos e mais uma vez cientes de que a única certeza na vida é a de que passaremos para outros planos designados por Deus.
 

Texto em revisão.

25.08.2013 - Em tempo: Acabamos de receber a notícia triste da morte do nosso cunhado Almir, um sujeito do bem, aumentando, assim o nosso sofrimento.

Ansilgus


A foto é da Igreja N.S. da Piedade, na orla de jaboatão.

 
ansilgus
Enviado por ansilgus em 25/08/2013
Reeditado em 25/08/2013
Código do texto: T4450654
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