Entrevistando
um poeta morto
Enquanto cochilava, dei um pulinho no outro mundo, e fiz esta entrevista
- Olá, poeta, tudo bem?
- Mais ou menos...
- Mais ou menos? Por quê?
- Porque aqui não existem confeitarias, bares, cafés, bebidas, nem mulheres... Aqui não posso fazer o que mais gosto: pilheriar. Muito mais do que versejar.
- Isso o incomoda?
- E muito. Como você deve ter lido em algum lugar, quando morei no Rio de Janeiro, entre 1876 e 1897, fiz farras homéricas. Principalmente na Rua do Ouvidor.
Meus amigos chamavam-me de "sacerdote de Baco". Porque também fazia versos, apelidaram-me de "boêmio genial". Eu gostava muito da caçoar. Passaram, então, a me chamar de "gênio da pilhéria".
Freqüentei as melhores confeitarias do Rio: a Cailteau, a Castelões, a Deroche, a Pascoal e a Colombo. Naquele tempo, nas confeitarias e nos cafés cariocas, reuniam-se os mais aplaudidos intelectuais do Brasil.
- Sei. O historiador baiano Pedro Calmon chamou você e seus companheiros de farras de "boêmios talentosos". Frisou, que antes de Machado de Assis fundar a Academia Brasileira de Letras, os cafés do Rio de Janeiro funcionavam como verdadeiros salões literários. Mas, afinal, quem eram seus amigos de patuscada?
- Você, meu conterrâneo, vai ficar com água na boca. Os mais chegados a mim: Olavo Bilac, Luis Murat, Pardal Mallet, Guimarães Passos, Aluísio Azevedo, José do Patrocínio e Coelho Neto. Este, segundo eu soube, tornou-se meu principal biógrafo. A propósito o amigo já leu alguma coisa sobre mim
- Li, sim. Coelho Neto, em A Conquista e Fogo Fátuo, fala sobre você. Infelizmente, poeta, esses dois livros foram esquecidos pelas editoras. Só nos sebos podem ser encontrados...
- Lamento. Mas sobre Patrocínio, deixe eu lhe contar uma história. Como abolicionista convicto, levei o Zé do Pato à minha terra. Foi um delírio! Talentoso, Patrocínio, num discurso inflamado e brilhante, chamou o Ceará de "Terra da luz". Homenageava o primeiro Estado brasileiro a decretar a abolição dos escravos.
- Conte-me mais alguma coisa sobre você.
- Fui poeta. Mas entre meus amigos marquei presença como um sujeito espirituoso, bom de chiste, um gracejador.
Também fui jornalista. Fundei o Meio, um pasquim de vida efêmera. Nunca pensei em escrever um livro. Eu gostava mesmo era de parolar.
Não fosse a generosidade de alguns amigos, e os seis sonetos que escrevi teriam desaparecido da face da Terra. Meus sonetos? A Fortaleza, De Viagem, A Abolição, A Trança e Ao piano.
- OK. Qual o seu melhor soneto?
- Todos são ótimos. Para satisfazê-lo, destacaria este:
Fortaleza
Ao longe, em brancas praias embalada
Pelas ondas azuis dos verdes mares
A Fortaleza - a loura desposada
Do sol dormita, à sombra dos palmares
Loura de sol e branca de luar,
Como uma hóstia de luz cristalizada,
Entre verbenas e jardins plantada
Na brancura de místicos altares.
Lá canta em cada ramo um passarinho,
Há pipilos de amor em cada ninho,
Na solidão dos verdes matagais.
É minha terra, a terra de Iracema,
O decantado e esplêndido poema
De alegria e beleza universais.
- Um pouco mais sobre você.
- Nasci no Ceará, no dia 2 de fevereiro de 1858. Meus pais, Mariano e Carolina, tiveram onze filhos. Fui seminarista. Estudei medicina, mas não me formei. Em dezembro de 1889, casei com a pianista Júlia Lima de Freitas Coutinho, com quem tive Francisco e Edgard.
- Como gênio da pilheria, escolha uma, e conte.
- Não. Defunto contando piada, não tem fundamento.
- Com sua permissão, conto eu. Li, que você, passando por Recife, encontrou a cidade homenageando Camões. Solicitado a deixar suas impressões sobre o autor de Os Lusíadas, você teria escrito o seguinte: "Camões, poeta zarolho,/ grande vate português,/ via mais por um olho/ do que nós por todos três."
- É verdade, é verdade, aconteceu...
- Para encerrar, diga seu nome, e quando você morreu.
- Meu nome? Paula Nei. Morri no dia 13 de outubro de 1897, no Rio de Janeiro, onde fui enterrado. Talvez o Ceará fosse o lugar certo do meu mausoléu.
- Poeta Francisco de Paula Nei, até outro encontro.
Quando acordei, junto ao meu travesseiro estava A vida boêmia de Paula Nei, formidável livro de Raimundo de Menezes, que, noite alta, acabara de reler...