Foto: arquivo da família Passos
RUA DO JENIPAPO
Recentemente estive em Cruz das Almas, no recôncavo baiano, e revisitei a rua do Jenipapo, também conhecida como 13 de Maio. Nada lembra o ambiente mágico da década de 50, onde vivi os dias mais felizes de minha infância. Naquela época a rua não era pavimentada, sendo dividida ao meio, em toda sua extensão, por árvores frondosas de ficus e oitis. À sombra dessas árvores, a vizinhança gostava de "tomar uma fresca" e bater papo às tardes de domingo. Todos os dias ela era palco de brincadeiras da meninada que jogava bola, brincava de picula, chicotinho queimado e parangolé. Só não servia aos sábados. O pessoal que vinha da roça para a feira livre tomava conta do espaço para amarrar suas montarias. Eram cavalos, burros e, principalmente, jumentos. Estes, quando pressentiam as fêmeas no cio, proporcionavam um espetáculo insólito para os passantes e hilário para a garotada: exibiam seus badalos avantajados, livravam-se das amarras e corriam relinchando em direção às jumentas até satisfazer seus instintos. Por conta disso, nos divertíamos com os mais desavisados. Ao ouvir o relincho de um jegue, a gente não deixava por menos e pegava o amigo pelo pé. Ei cara, o que é isso ai pendurado em sua cabeça? O menino distraído levava a mão à cabeça e o resto da molecada gritava aos risos: ihihih, salvou o jegue!
Aos olhos de uma criança, a rua parecia muito extensa. Entretanto, o meu universo era a primeira quadra que faz esquina com a Avenida Alberto Passos. Nessa esquina, hoje ocupada pela Sky, ficava a casa de seu Cazuzinha que mais parecia uma chácara. Muitas mangueiras cujos galhos ultrapassavam o muro alto, deixando cair seus frutos na calçada. Eram mangas pequenas do tipo carlota, as mais deliciosas que já provei. Em seguida, vinha o consultório de Fonsequinha, dentista que atendia à nossa família. A casa de seu Bernardo, um homem franzino que consertava radio, ficava logo depois. Uma vez, para espanto de todos, sei lá por qual motivo, ele saiu de arma em punho perseguindo um cara pela rua. Foi a maior confusão.
Seu Luis era um cearense que morou pouco tempo nessa rua. Quando se mudou, ele vendeu seu gramofone ao meu pai, junto com muitos discos, principalmente de Luiz Gonzaga.
Dona Almerinda, uma velha senhora corpulenta, morava na casa ao lado desse nordestino. Mais me chamava atenção os enormes botões de seu vestido estampado. Eu andava doido para conseguir um deles para o meu time de futebol de mesa. Eles eram do tipo capela, ótimos para levantar a bola e cobrir o goleiro.
Na casa seguinte cheia de janelas, morava o Dr. José, o dentista novato que montou seu consultório na sala da frente. Pouco tempo depois ele foi embora, vindo ocupar a casa a família de seu Alfredo Carvalho. Walter, seu filho mais novo, foi meu colega no Ginásio. Muitas vezes eu peguei carona em sua bicicleta para ir ao colégio.
Seu Irineu, que tinha um caminhão Ford, era o vizinho do lado direito de minha casa. A família toda gostava de futebol e torcia para o Vasco da Gama, menos ele, um tricolor doente. Tonho e Lula, seus filhos, eram amigos bons de bola e jogávamos baba (ou pelada como é conhecida no resto do país) sempre juntos. Lembro-me que fundamos um time infanto-juvenil que se chamava São Cristovão. Por que São Cristovão? Porque só podíamos comprar camisas de malha barata na cor branca que é a cor desse pequeno time carioca.
A casa da gente era estreita, porém muito comprida. Não havia água encanada e a família se valia de uma cisterna onde se montava um cavalete e manivela para puxar a corda que prendia a lata d'água. No quintal, de tamanho razoável, existia uma barroca bem funda que era o paraíso de nossas brincadeiras. Ali fui Tarzan, Roy Rogers, Tom Mix e outros mocinhos das fitas do Cine Popular que ficava bem pertinho, na Avenida, ao lado da loja de seu Aristeu que mais tarde foi para praça, cedendo o local para o Bar Badinho.
Seu Zezito Marques e sua família eram nossos vizinhos à esquerda. Ele era o proprietário da casa onde morávamos de aluguel e dono da venda que nos abastecia na base do fiado. Mas tudo era anotado numa caderneta e meu pai pagava ao final de cada mês. Heraldo, seu filho caçula, era também um dos que faziam parte do meu círculo de amizade.
Mais três vizinhos próximos completavam a nossa quadra. Seu Nogueira, retratista (como se chamava o fotógrafo naquele tempo) não tinha filhos, era fã de Vicente Celestino. Aos domingos a partir do meio dia a rua toda era obrigada a ouvir "O ébrio" e "Acorda patativa" cujos acordes saiam de sua casa a todo volume. Seu Zinho Peixoto era agente de uma empresa que comprava fumo para exportação. Sua esposa dona Celeste, rezadeira das boas, era quem nos livrava do "olhado", sempre nos socorrendo quando estávamos de quebranto. Ela nos rezava segurando ramos de uma planta chamada vassourinha que era agitada em volta do nosso corpo de cima a baixo, de baixo para cima e pelos lados. Ao final, quando os galhos estavam murchos, era sinal de que o olhado tinha sido tirado.
Do lado oposto à nossa casa, só existia uma casa residencial, a de seu Honorato, dono de uma padaria na Praça. O restante eram muros, armazéns de fumo e a sede da Euterpe Cruzalmense, o único prédio que resistiu ao tempo e lá se encontra até hoje. A banda de música da Euterpe era rival da Lira Guarany que ficava no começo da rua da Vitória. Nas festas cívicas as duas filarmônicas se enfrentavam no coreto da Praça em duelo sonoro. Nenhuma queria deixar o local antes da outra. Era preciso a intervenção de autoridades para garantir a saída das duas ao mesmo tempo.
Na quadra contígua morava seu Tatá, o enfermeiro, e seu Bazu que fazia o jogo de bicho. Depois vinha o seu Vadinho, chofer de praça, pai da menina de olhos verdes chamada Zéu, a mais bonita da rua, quiça da cidade. Eram seus vizinhos dona Santinha e seu Otávio que mais tarde comprou um ônibus moderno, fazendo a linha para Salvador. Seu Verdival Pitanga, dono da tipografia que funcionava nos fundos da casa também morava por ali. Era editor do jornal Nossa Terra, onde Galeno d'Avelirio, poeta maior da cidade publicava seus sonetos. Lembro que publiquei meu primeiro texto, uma composição sobre o dia das mães no "Nossa Terra Infantil".
A professora Natalia, minha mestra no Grupo Escolar ComendadorThemístocles também era a moradora letrada daquela quadra. Defronte ficava a casa de seu Joel Reis, comerciante, dona Dedé, irmã de Vadinho e mãe de Niba, jogador do Ipanema F.C. Um pouco mais distante, ficava a tenda Chico Boi, o sapateiro que fazia nossas alpercatas e sapatos com sola de pneu de automóvel. Tinha também a Luisita, costureira, que criava muitos gatos. A sua casa cheirava a esses animais.
No fim da rua do Jenipapo, perto da rua da Estação morava seu Mario, o alfaiate que costurava as calças da gente (as camisas, minha mãe mesma confeccionava em sua velha Singer). Nessas imediações, bem próximo ao armazém de seu Tovo, meu padrinho, vivia também Zé Pelanca, motorista do Instituto do Leste (hoje Embrapa) e seu filho Zé, o primo de Lula e Tonho de Irineu que, às vezes, brincava com a gente.
Atualmente, como não podia deixar de ser, tudo está mudado. A rua do Jenipapo é uma rua igual às outras, tomada de sobrados de mal gosto arquitetônico e coalhada de automóveis. O progresso foi artífice dessa brutal transformação. Do meu universo feliz só restam lembranças que povoam a minha mente, indo e vindo, como se compusessem o roteiro de um filme de Fellini.
RUA DO JENIPAPO
Recentemente estive em Cruz das Almas, no recôncavo baiano, e revisitei a rua do Jenipapo, também conhecida como 13 de Maio. Nada lembra o ambiente mágico da década de 50, onde vivi os dias mais felizes de minha infância. Naquela época a rua não era pavimentada, sendo dividida ao meio, em toda sua extensão, por árvores frondosas de ficus e oitis. À sombra dessas árvores, a vizinhança gostava de "tomar uma fresca" e bater papo às tardes de domingo. Todos os dias ela era palco de brincadeiras da meninada que jogava bola, brincava de picula, chicotinho queimado e parangolé. Só não servia aos sábados. O pessoal que vinha da roça para a feira livre tomava conta do espaço para amarrar suas montarias. Eram cavalos, burros e, principalmente, jumentos. Estes, quando pressentiam as fêmeas no cio, proporcionavam um espetáculo insólito para os passantes e hilário para a garotada: exibiam seus badalos avantajados, livravam-se das amarras e corriam relinchando em direção às jumentas até satisfazer seus instintos. Por conta disso, nos divertíamos com os mais desavisados. Ao ouvir o relincho de um jegue, a gente não deixava por menos e pegava o amigo pelo pé. Ei cara, o que é isso ai pendurado em sua cabeça? O menino distraído levava a mão à cabeça e o resto da molecada gritava aos risos: ihihih, salvou o jegue!
Aos olhos de uma criança, a rua parecia muito extensa. Entretanto, o meu universo era a primeira quadra que faz esquina com a Avenida Alberto Passos. Nessa esquina, hoje ocupada pela Sky, ficava a casa de seu Cazuzinha que mais parecia uma chácara. Muitas mangueiras cujos galhos ultrapassavam o muro alto, deixando cair seus frutos na calçada. Eram mangas pequenas do tipo carlota, as mais deliciosas que já provei. Em seguida, vinha o consultório de Fonsequinha, dentista que atendia à nossa família. A casa de seu Bernardo, um homem franzino que consertava radio, ficava logo depois. Uma vez, para espanto de todos, sei lá por qual motivo, ele saiu de arma em punho perseguindo um cara pela rua. Foi a maior confusão.
Seu Luis era um cearense que morou pouco tempo nessa rua. Quando se mudou, ele vendeu seu gramofone ao meu pai, junto com muitos discos, principalmente de Luiz Gonzaga.
Dona Almerinda, uma velha senhora corpulenta, morava na casa ao lado desse nordestino. Mais me chamava atenção os enormes botões de seu vestido estampado. Eu andava doido para conseguir um deles para o meu time de futebol de mesa. Eles eram do tipo capela, ótimos para levantar a bola e cobrir o goleiro.
Na casa seguinte cheia de janelas, morava o Dr. José, o dentista novato que montou seu consultório na sala da frente. Pouco tempo depois ele foi embora, vindo ocupar a casa a família de seu Alfredo Carvalho. Walter, seu filho mais novo, foi meu colega no Ginásio. Muitas vezes eu peguei carona em sua bicicleta para ir ao colégio.
Seu Irineu, que tinha um caminhão Ford, era o vizinho do lado direito de minha casa. A família toda gostava de futebol e torcia para o Vasco da Gama, menos ele, um tricolor doente. Tonho e Lula, seus filhos, eram amigos bons de bola e jogávamos baba (ou pelada como é conhecida no resto do país) sempre juntos. Lembro-me que fundamos um time infanto-juvenil que se chamava São Cristovão. Por que São Cristovão? Porque só podíamos comprar camisas de malha barata na cor branca que é a cor desse pequeno time carioca.
A casa da gente era estreita, porém muito comprida. Não havia água encanada e a família se valia de uma cisterna onde se montava um cavalete e manivela para puxar a corda que prendia a lata d'água. No quintal, de tamanho razoável, existia uma barroca bem funda que era o paraíso de nossas brincadeiras. Ali fui Tarzan, Roy Rogers, Tom Mix e outros mocinhos das fitas do Cine Popular que ficava bem pertinho, na Avenida, ao lado da loja de seu Aristeu que mais tarde foi para praça, cedendo o local para o Bar Badinho.
Seu Zezito Marques e sua família eram nossos vizinhos à esquerda. Ele era o proprietário da casa onde morávamos de aluguel e dono da venda que nos abastecia na base do fiado. Mas tudo era anotado numa caderneta e meu pai pagava ao final de cada mês. Heraldo, seu filho caçula, era também um dos que faziam parte do meu círculo de amizade.
Mais três vizinhos próximos completavam a nossa quadra. Seu Nogueira, retratista (como se chamava o fotógrafo naquele tempo) não tinha filhos, era fã de Vicente Celestino. Aos domingos a partir do meio dia a rua toda era obrigada a ouvir "O ébrio" e "Acorda patativa" cujos acordes saiam de sua casa a todo volume. Seu Zinho Peixoto era agente de uma empresa que comprava fumo para exportação. Sua esposa dona Celeste, rezadeira das boas, era quem nos livrava do "olhado", sempre nos socorrendo quando estávamos de quebranto. Ela nos rezava segurando ramos de uma planta chamada vassourinha que era agitada em volta do nosso corpo de cima a baixo, de baixo para cima e pelos lados. Ao final, quando os galhos estavam murchos, era sinal de que o olhado tinha sido tirado.
Do lado oposto à nossa casa, só existia uma casa residencial, a de seu Honorato, dono de uma padaria na Praça. O restante eram muros, armazéns de fumo e a sede da Euterpe Cruzalmense, o único prédio que resistiu ao tempo e lá se encontra até hoje. A banda de música da Euterpe era rival da Lira Guarany que ficava no começo da rua da Vitória. Nas festas cívicas as duas filarmônicas se enfrentavam no coreto da Praça em duelo sonoro. Nenhuma queria deixar o local antes da outra. Era preciso a intervenção de autoridades para garantir a saída das duas ao mesmo tempo.
Na quadra contígua morava seu Tatá, o enfermeiro, e seu Bazu que fazia o jogo de bicho. Depois vinha o seu Vadinho, chofer de praça, pai da menina de olhos verdes chamada Zéu, a mais bonita da rua, quiça da cidade. Eram seus vizinhos dona Santinha e seu Otávio que mais tarde comprou um ônibus moderno, fazendo a linha para Salvador. Seu Verdival Pitanga, dono da tipografia que funcionava nos fundos da casa também morava por ali. Era editor do jornal Nossa Terra, onde Galeno d'Avelirio, poeta maior da cidade publicava seus sonetos. Lembro que publiquei meu primeiro texto, uma composição sobre o dia das mães no "Nossa Terra Infantil".
A professora Natalia, minha mestra no Grupo Escolar ComendadorThemístocles também era a moradora letrada daquela quadra. Defronte ficava a casa de seu Joel Reis, comerciante, dona Dedé, irmã de Vadinho e mãe de Niba, jogador do Ipanema F.C. Um pouco mais distante, ficava a tenda Chico Boi, o sapateiro que fazia nossas alpercatas e sapatos com sola de pneu de automóvel. Tinha também a Luisita, costureira, que criava muitos gatos. A sua casa cheirava a esses animais.
No fim da rua do Jenipapo, perto da rua da Estação morava seu Mario, o alfaiate que costurava as calças da gente (as camisas, minha mãe mesma confeccionava em sua velha Singer). Nessas imediações, bem próximo ao armazém de seu Tovo, meu padrinho, vivia também Zé Pelanca, motorista do Instituto do Leste (hoje Embrapa) e seu filho Zé, o primo de Lula e Tonho de Irineu que, às vezes, brincava com a gente.
Atualmente, como não podia deixar de ser, tudo está mudado. A rua do Jenipapo é uma rua igual às outras, tomada de sobrados de mal gosto arquitetônico e coalhada de automóveis. O progresso foi artífice dessa brutal transformação. Do meu universo feliz só restam lembranças que povoam a minha mente, indo e vindo, como se compusessem o roteiro de um filme de Fellini.