Sem palavras
Subo no ônibus e descubro que não há nenhum lugar para sentar. Resmungo, porque eu queria aproveitar esse tempo para ler. Encosto-me então em um ferro qualquer e resigno-me com a tediosa viagem que me aguarda. No banco ao meu lado estão sentados dois jovens que falam com as mãos. São surdos-mudos, como tantos outros que já vi, sem entender absolutamente nada do que dizem. Reparo melhor neles. É um casal. Estão na faixa dos 20 anos, talvez um pouco mais. Ela é bonita e ele é boa pinta. Conversam, conversam horrores. Como conversam os surdos-mudos! Imagine você, Henrique, você surdo-mudo. O que faria com a sua timidez? Penso então num mundo de surdos-mudos, todos obrigados a olhar nos olhos de cada um, a prestar realmente atenção uns nos outros – quase chego a lamentar que possamos falar e ouvir.
E como ri esse casal! Estão realmente muito felizes. Não sei o que falam, mas sem dúvida são coisas muito doces e engraçadas. Eles se tocam bastante também. Ela tira uma sujeirinha do seu próprio rosto com o dedo dele. Um deles falou algo que motivou uma espécie de guerra de cócegas. Como era bom de ver! E tanto fizeram, tanto se mexeram e se agitaram, que derrubaram uma garrafinha de água que levavam. Um senhor se abaixou e a devolveu. Ela então pegou a garrafinha, abriu a tampinha e colocou um pouco de água dentro dela. Sem aviso, jogou a água em cima dele.
Era uma brincadeira, uma gostosa brincadeira, e eles riam e se divertiam, e se abraçavam, e se cutucavam, e se amavam verdadeiramente ali na minha frente, enquanto eu me obrigava a fazer minha melhor cara de indiferença, como se aquilo que estava acontecendo diante de mim fosse absolutamente banal e corriqueiro e eu não estivesse encantado até os ossos. Deus, como eu queria que aquela viagem não acabasse nunca, que aquele ônibus seguisse até o fim do mundo, só para poder ficar observando aquele casal! Só pra ver aquele amor de surdos-mudos que me deixou tão, tão, sem palavras.