Duplo sentido da vida
Todas as palavras têm duplo sentido! Duplo, triplo, quádruplo, inúmeros sentidos. Vá lá, não todas, quem sabe uns noventa e oito por cento delas. Uma palavra por si só não significa aquilo que por ela quiseram dizer. Tem um quê de malícia do emissor, de perspicácia, inocência, magia ou ignorância. Temos em uma palavra várias explicações. Um pinto não é somente um pinto, o filhote da galinha. Pode ser uma moeda antiga, o falo, uma possibilidade do verbo pintar. Aliás, você pinta como eu pinto? Viu, está aí um caso clássico de duplicidade da língua, agregada às peças que os fonemas nos pregam. Manga eu posso tirar da árvore (se eu disser tirar do pé, criarei mais de um sentido), coser na camisa, tocar numa festa e se eu puser um símbolo gráfico minúsculo teremos um famoso gênero japonês.
Existe também o contrário, quando usamos várias palavras para ilustrar apenas uma: foi assim comigo tentando explicar a uma gringa na Lapa o que significava a palavra saudade. Se eu fosse poeta, diria ser procurar e não se achar, perder o que nunca se teve ou desdizer o que nunca foi dito; se perder sem nunca ter partido. Forçando mais um pouquinho minha veia lírica diria tratar-se de saudar a idade, o que nos tempera e estimula com o passar do tempo à medida que ficamos crescidos e cessamos a tabuada. Quem sabe assim não perderia a noite nem a companhia da gringa (como ocorreu).
Nem os números têm um único sentido. Lembra-se das bases numéricas? Aquilo que o teu professor de matemática te fez decorar e você não seguindo a área de exatas vê pouca utilidade. Lembra-se das bases binárias, decimais, hexadecimais? Pois então, o número 100 na base decimal não representa o mesmo número na base binária e muito menos na hexadecimal. Ainda bem da pouca aplicabilidade desse negócio em nossos dias, já pensou se todos resolvessem sair trocando as bases por aí? Pode ser que por este ponto comece a revolução das máquinas: trocando-se a base decimal da humanidade e escravizando-nos com seus zeros e uns binários.
Se eu dissesse “morra!” a alguém, esse alguém entraria em um mundo de possibilidades. Queira eu que diminua o sopro de vida dele? Que sua existência seja limitada e sua representação opaca às minhas vistas? Que ele já não me exista mais nem provoque dor ou raiva, amor ou ódio, que eu já nem pense mais sendo sua presença furtiva à minha consciência? Ou eu desejo apenas que ele enfim se jogue na BR?
Da mesma forma é o amor e suas representações. Quando digo que a amo e ela responde “como amigos não é?”; ou eu faço parecer que o amor esteja para mim como se apenas desejo fosse. Aliás, esclarecendo, é isso o amor na minha clara propositura: quando diante de vários sentidos que as palavras nos tecem, encontramos alguém que possua o mesmo significado que você. O amor é denotativo e sem metáfora, embora nos embebedemos dela para justificar e explicar o amor. Talvez seja uma equação com duas incógnitas de cada lado, mas que no fim nos revela uma sentença de igualdade.
Então seja a vida assim nessa profusão de palavras sem sentidos, de duplos sentidos e com várias direções. E assim, quem sabe, elas não nos venham até sozinhas; sejam acompanhadas de sorrisos, gritos, berros, lágrimas, sussurros ou pontuações frias da gramática. Que para cada interrogação criemos uns seis pontos de exclamação, que na malícia dos sorrisos, nos cantos das bocas, seja cheio de reticências e que deixemos realmente só por último e derradeiro parágrafo o inevitável ponto final.