Imaginava esquecido. Ou pelo menos parcialmente esquecido. No entanto tudo volta claro como se tivesse acontecido ontem. O tempo do terror voltou a ocupar meu coração e de tantos que passaram pela terrível experiência de ter sido perseguido na época da famigerada ditadura militar. Na verdade nada havia sido esquecido, estava adormecido e bastou um acontecimento para voltar tudo à tona. Uma correspondência da Anistia Política me fez mergulhar na negritude dos tempos de ferro, ou melhor, de sangue.
O pesadelo começou ainda na minha adolescencia. Militante da Juventude Comunista, por diversas vezes vi o exército cercar nossa casa com diversas viaturas, armas pesadas e uma arrogância desmedida. Meus pais lembro bem, tentavam nos defender, nos proteger, em vão. Os "bandidos" éramos eu, minha irmã e um cunhado. Não tínhamos qualquer direito. Tudo nos era negado inclusive nossa liberdade. Uma ideologia nos custava o direito de lutar por uma causa. Causa justa por demais. Acredito que fomos nós, os bandidos da época que iniciamos a abertura política desfrutada atualmente com uma visível melhoria na desigualdade social gritante que acontecia na época. Se não conseguimos totalmente nossos propósitos, acredito que já foi válido todo o sofrimento. Durante anos o medo nos acompanhou, a truculência militar nos incomodava permanentemente. Nossa vida virava um inferno.
Mesmo com tudo que sofremos nosso sonho não morria. Já no fim do regime militar resolvemos fazer uma pichação em homenagem ao aniversário do partido. Acreditávamos já ter passado a perseguição, ou pelo menos amainado. Fui novamente presa, dessa vez uma filha de menor me acompanhava. Desnecessário relatar o que se seguiu. Logo "descobriram" no meu carro uma arma, totalmente desconhecida para mim. A acusação agora era de assalto á banco. Nossa casa mais uma vez revirada na verdade, assaltada.
Seguiram-se dias de terror, humilhações, torturas, violências cometidas ininterruptamente... Uma sequencia de absurdos sem nenhum direito a defesa. Direitos humanos, tão em voga atualmente... Nem pensar. Fui colocada em uma cela minúscula, com telhado de zinco que fazia a temperatura subir enormemente. De hora em hora, uma visita nada agradável de um carcereiro com pancadas, impropérios e outras coisas mais. Como colega de cela, um humilde senhor que tinha tido a "brilhante" idéia de xerocar dinheiro. Pode parecer hilário, mas ele tinha medo de mim, mesmo tendo que repartir o espaço comigo. Será que ele já sabia da fábula que comunista comia criancinha? O fato é que apesar de estarmos ambos numa situação crítica, não consegui uma palavra sequer de sua boca.
O meu carrasco principal, Carlos Leonel, era um gaúcho alto, forte, de barba clara que foi raspada após as torturas. Uma máscara preta escondia parcialmente seu rosto... Olhos extremamentes azuis. Um azul que me segue até hoje.
Após dias de intensos interrogatórios veio a transferência para João Pessoa. Pasmem: Cinco viaturas todas fortemente armadas para levar uma "perigosa" guerrilheira...
(voltarei a escrever)