clari-se

Ligaram ontem à tarde encomendando um texto. Sabiam que eu sou de começar a escrever na confiança de mentir no que não posso dizer a verdade. Sabiam, também, que me acompanha, nesse trabalho, o peso enorme de uns olhos fiscais, no canto de mim, reprovando as mentiras. Sabiam, com muitíssima convicção, que eu admitiria: a mentira é do ofício, mas não posso suportá-la nem sustenta-la. Dizer que tem rabo de peixe a pobre gaivota, vá lá. O que não posso é arranjar um rabo de bicho que não existe para botar noutro inconcebível. Quem me dera, além quimera.

Era para introduzir uma entrevista perfil. A função não pode caber a um escritor melhor que a você, dizia o entusiasmo do outro lado da linha. Respondi que não escrevo mais para revistas. Isso, de começo, eram discussões intermináveis quanto ao tipo de leitor – a julgar que as pessoas tenham tipos -, debates de linha editorial. Agora, estou só velho e cansado para encomendas. E minha estética já não dá para os ornamentos dessa periodicidade espaçada, como não dão os meus posicionamentos senis para as novas demências.

A entrevista perfil de Martha Couto. Porque seria absolutamente apropriada a introdução do jornalista casado 12 anos com a mulher famosa do momento, que merece uma entrevista perfil – interessantíssimo o gênero de texto jornalístico em que importa mais a pessoa que as coisas que ela fez. E eu nem teria que falar diretamente com a senhora Couto – ela nunca quis meu nome, nem ao final do dela, nem em conta corrente -, porque hoje em dia nada é feito muito diretamente. Não haveria mais nada a ser trocado entre nós depois que concordamos em não nos vermos. Não foi grande conversa, nem pacto. Cheguei da redação, ela da ONG, e sabíamos que não voltaríamos no dia seguinte. Como se o destino da nossa casa fosse, desde então, não ter destino algum. E, daí por diante, acompanhamo-nos pelos jornais. Eu escrevia, ela estava – como sempre foi.

Cismaram que somente eu poderia dizer a verdade sobre Martha Couto. E que verdade? A verdade pessoal? A verdade social? Psicológica? Profissional? Cultural? Financeira? A verdade sobre nosso casamento? Sobre como ela levaria crianças para viajar pelo mundo mesmo que não tivesse, para isso, uma empresa? A de como Martha nunca soube o que fazer diante de uma criança? Quanto a ela sempre ir embora quando eu dormia, ainda no tempo da casa da minha mãe? A de suas obsessões? A da expressão com que entrou em casa no dia em que decidiu que a fidelidade matrimonial era burguesa demais para nós? A de como Martha acordava qual fosse e menor gota de instabilidade sonora dentro do quarto? A de nunca ter sabido dizer a coisa certa nem a si mesma? A sobre ter me traído? E eu a ela? A de como me cansava e aturdia quando me quis feito adolescente? A verdade de como sempre fez que todos lhe precisassem em fingir precisar de todos? A verdade sobre Martha ter sido subalterna em seus infinitos medos, toda a vida, exceto pela última decisão que tomava em segredo nosso – e essa é a minha verdade – e que impunha, numa palavra final, a soberania a avassalar todo o restante das verdades? Que verdade?

Já disse. Não escrevo mais para revistas. E não tenho nada que dizer sobre Martha.

Não suporto nem sustento o ofício.

Adriana Campos K
Enviado por Adriana Campos K em 21/08/2013
Código do texto: T4444264
Classificação de conteúdo: seguro