O FANTASMA DA BIRMÂNIA
REMINISCÊNCIAS DA CASERNA:
A Revolução Constitucionalista de 1964 pegara o Soldado 235, Clemente, de jeito.
No dia 31/03/1964 ele estava de serviço, no Quartel do QG da 4ª. R.M. no Bairro Mariano Procópio em Juiz de Fora – MG. Como havia se incorporado à tropa, dia 18 de janeiro, tinha somente 74 dias de treinamento assim como seus companheiros revolucionários.
Até o dia 22 de abril participou de missões em diversos pontos da cidade, tais como: Aeroporto da Serrinha, Agência dos Correios e Sede da UNE.
Dia 23 de abril, passadas as missões pela cidade e acalmada a situação governamental, foi chamado à presença do Cap. Pestana, seu comandante e juntamente com os companheiros Balbino e Antonino foi informado que na próxima segunda-feira deveria se apresentar no Quartel da 4ª. Companhia de Intendência, na cidade de Santos Dumont , pois estavam, os três, sendo transferidos para lá, como adidos. Foram escolhidos para fazerem Cursos Especializados: Curso de Cabo, soldado Clemente e curso de soldados especializados Balbino e Antonino.
Não tiveram escolha e nem direito de retrucar. Era obedecer ou obedecer. Afinal eram soldados e estavam recebendo instrução rígida para enfrentar qualquer situação.
Balbino, oriundo do Bairro Retiro, Antonino, de Rio Novo e Clemente do Bairro Borboleta, (que belo trio, os três rapazes formavam). Nenhum deles nunca havia saído de casa por uma noite sequer...
Com as passagens de trem em mãos, se apresentaram na Estação Mariano Procópio, bem defronte ao quartel e embarcaram no “Maria Fumaça”, rumo ao desconhecido. O trem deslizava pelos trilhos barulhentamente, levando três corações disparados e seis mãos geladas.
Apitando, a composição freava, após longo tempo (três horas), na estação central de Santos Dumont. Os membros do “trio parada dura”, já refeitos, empinando o peito apearam do “Cavalo de Aço” e começaram o deslocamento para o novo Quartel. Olhando para todos os lados, Antonino, aquele de Rio Novo, saiu-se com essa: - Quelemente e Balbino, vou falar uma coisa com vocês, como não conhecemos a cidade, é melhor andar “coleado” (isto é, juntos) para não nos perdermos.
O Quartel da 4ª. Cia. Int. não era muito distante e em pouco tempo já estavam batendo às portas do novo endereço de trabalho para eles.
O Comandante era o Major Lourenço, o subcomandante era o capitão Albino, da linha dura, que havia combatido na 2ª. Guerra Mundial, na Itália, como sargento. Tinha também o Sgt. Edésio e dentre muitos lembranças de um soldado, Cleto, de Rio Pomba, que também prestava serviço lá. Afinal, já se passaram 49 anos e a memória falha, já que não se anotavam nomes...
Após as apresentações e credenciais foram encaminhados ao alojamento, situado no meio do terreno, já que mais ao fundo se localizava a garagem de veículos.
Depararam com um quadro que desanimaria qualquer um, nessa recepção:
- pelo grande pátio, esparramados estavam, dezenas de colchões enfileirados, tomando sol. – “É que deu uma epidemia de “chatos” e “pulgas””, justificou Cleto, nosso anfitrião.
E continuou: “Nós estamos sendo “carcereiros” de uma Companhia inteira, de músicos de São João Del Rei. Parece até um “Campo de Concentração”, isto aqui, somente que mais ligth. Dizem que eles se recusaram a se movimentar com a tropa que se dirigiria ao Rio de Janeiro, logo no início da Revolução. Por isso estão aqui, presos, esperando decisão do Estado Maior”. Não se preocupem não, são gente boa, só não nos permitem ficar junto deles, nem conversar com eles. São muitos oficiais e sargentos, todos músicos e trouxeram alguns instrumentos com eles. Sax, trompetes, clarins, cornetas, acordeões e violões.
Chegaram enfim ao dormitório, mais uma decepção: as camas e beliches estavam todas ocupadas pelos “encarcerados” e os soldados ficavam pelo chão, esparramados em colchões, no mesmo pavilhão, separados apenas por uma linha, marca, no chão e alguns guarda-roupas. Enfim, os soldados eram jovens com 18/19 anos e gente simples e treinada para qualquer situação.
Em pouco mais de 20 dias, a situação dos insurretos se resolveu e os soldados que dormiam no chão, enquanto os presos de mais alta patente ocupavam as camas, puderam relaxar e o “status quo” se restabeleceu. Creio que foram anistiados ou coisa parecida e retornaram à sua cidade natal.
Apesar de tudo, foi muito bom, ouvir boa música em diversos momentos dos dias. Ora um deles, sax ao ombro, subia até ao alto do barranco, acima do campo de futebol e lá se assentava num cupim e desfiava belas notas, pela manhã ou à tardinha.
Foi mágico, quando numa tarde, quase anoitecendo, um deles, subiu até no alto do barranco e desfiou as notas doloridas do “Il silenzio” no seu trompete e desceu de lá com os olhos lacrimejantes. A saudade de casa lhe corroía a alma. À noite, no alojamento, se juntavam em grupos e faziam um duelo de músicas clássicas e/ou populares e dormiam todos bem relaxados e felizes, apesar da situação insólita em que se encontravam.”
Durante parte dos dias o curso de cabo e soldado especializado se desenrolava normalmente, com provas nas 6as. Feiras e o trio de Juiz de Fora se revezava em idas e vindas no trem “Maria Fumaça” (era mais barato que o ônibus) apesar de muito lento e matavam a saudade da família. Quando estavam “de serviço” nos fins de semana, não viajavam.
Um desses serviços era a guarda da BIRMANIA. As garagens das viaturas ficavam lá no final do terreno do quartel e logo acima existia uma mata fechada, com árvores centenárias e matagal que dificultava o trânsito de pessoas, cercada com arame farpado. Quando a escala chamava, o soldado se lamentava: “Estou de serviço, hoje, na Birmânia; estou ferrado”.
Clemente foi escalado para tirar serviço na Birmânia e encafifado perguntou a Cleto: - Afinal, qual é o problema? – Sabe o que é? Os soldados dizem que lá pela meia-noite, quando estão de plantão, se ouve um barulho como um arrastar de correntes, vindo do interior da mata. Um frio gélido percorre a espinha e se fica paralisado, não tendo forças nem pra correr.
Naquele dia, à hora do almoço, foi servida uma carne cozida junto a arroz, feijão e batatas. Cada um pegava sua bandeja e era servido com uma concha de cada alimento. Clemente, escalado para a Birmânia, turno da noite, sentou-se no meio-fio, perto da quadra, bandeja nos joelhos, comeu e comeu até que mexendo na carne notou uma coisinha se mexendo lá dentro. Era um bichinho que tentava sair de um orifício da carne mal cosida. Enojado, com o estômago dando voltas, se levantou e saiu mostrando aquela aberração a todos à sua volta. Todos, com suas bandejas na mão foram, em comissão, até à cozinha mostrar bichinho do Clemente. Foi um alvoroço naquele dia. Muitos fizeram vômitos pela quadra afora. Clemente, não, seu estômago era forte ...
Por isso continuou escalado para o serviço na Birmânia. Lá pelas desoras, todo paramentado com cinto de guarnição, sabre armado no mosquetão, capacete e uniforme guarnecido de pijama elétrico por baixo, não acreditava no que estava acontecendo. Não era o Fantasma da Birmânia, NÃO, era uma poderosa cólica que lhe estava revirando as tripas. Os efeitos do estranho almoço agora se fazia sentir . Sozinho e naquele ermo, gelado pelo sereno que àquela época do ano (maio) trazia um frio cortante, o pobre soldado não teve outra alternativa; deixou o mosquetão de lado e atabalhoadamente tirou o cinto de guarnição e se embrenhou na mata adjacente, para “se aliviar”, sem pensar na maldição do Fantasma da Birmânia.
No fim de seu turno, na troca de plantão, estava hirto e mal podia parar de pé. Contou seu drama para os colegas e foi para o alojamento tomar um banho e um chá quente.
Os colegas, às gargalhadas, comentavam: - “O Clemente assustou o FANTASMA DA BIRMANIA com seus gemidos e a “lembrança mal cheirosa” que deixou lá no mato!
Certa feita, Clemente e alguns soldados foram mandados capturar cobras, no pasto adjacente ao campo de futebol e para tanto receberam um vidro de boca larga e uma vareta. Dispostos em linha, andaram, calçados em suas botas, perscrutando o solo em busca desses ofídios. Encontrando um, a cercavam com suas varetas e encaminhavam-nas para a boca do vidro aberta. Uma vez dentro, rosqueavam a tampa e levantavam o vidro apresentando-o como um troféu.
Fora esses pequenos dramas, o dia a dia do trio de Juiz de Fora no quartel da 4ª.Cia.Int. de Santos Dumont, se passou até com algumas alegrias, como daquela feita em que o Major Lourenço marcou com a comunidade local, uma visita de familiares dos soldados ao quartel, para uma exibição de alguns serviços que os militares da Intendência prestavam à tropa.
Um deles seria o banho da tropa. Os soldados em campo de batalha, num descanso seriam atendidos pela Intendência, que levariam até eles toda a infra estrutura para tanto, canos que seriam armados em forma de chuveiros e bombas para buscar água em rios ou açudes adjacentes. Os soldados, então tomariam banho no pátio da Companhia, simulando estarem em ação ou num campo aberto. Mas, pelados? Murmuravam os soldados. “Claro, depois de dias sem banho a tropa se prenderia a detalhes? Todo mundo nu.” A noticia correu na cidade.
No dia marcado, o quartel estava florido. Acostumados a somente ver fardas e calças compridas, a soldadesca não se fartava de ver saias e vestidos das mais diversas cores e tamanhos e o melhor era o que vinha dentro, o recheio. As mulheres, moças e meninas transitavam alegremente pelas barracas de guloseimas juninas, flertando com os jovens soldados. Estavam ansiosas pelo banho da tropa, anunciada pelo comandante Major Lourenço.
Aqueles que estavam de serviço, como os adidos de Juiz de Fora e os soldados de outras cidades, que trabalhavam nas barracas, não participariam do banho, mas estavam de olho no que estava para acontecer. A estrutura de canos estava armada no pátio, longa fila de canos estendidos, com um buraco simetricamente aberto, por onde a água jorraria, aguardava somente a chegada dos vinte voluntários para o banho. A uma ordem do comando, ligaram-se as bombas e a água esguichava em todos 20 buracos. Todos, ansiosos, de olho na porta de saída do alojamento, especialmente os olhinhos das meninas. Um aviso sonoro se ouviu e os soldados, em uniforme de educação física, em forma, se deslocaram para os chuveiros e começaram seu banho, com calções azuis e camisetas brancas. Um oh de decepção percorreu a plateia feminina, que esperava algo mais e que não aconteceu. Foi uma gargalhada geral, quando as águas cessaram de jorrar e os soldados ensopados em suas roupas, sem ao menos tirarem a camisa, saíram correndo para o alojamento, para se trocarem.
Deixaram saudades as idas ao Cine Vitória, em algumas noites frias, as festas juninas no Bairro do “O”, os serviços de carregamento de rejeitos nos vagões de trem, na estação ferroviária, no Bairro 4º Depósito, missas na Igreja de São Miguel e Almas e a Páscoa no Quartel, em Junho/1964, celebrada pelo saudoso Capitão Padre Capitão Wilson Valle da Costa, tudo isso, somadas as emoções descritas anteriormente, deixaram marcas no Cabo Clemente, 235, do QG da 4ª. RM de Juiz de Fora - MG, quando de sua passagem pela 4ª. Cia. Int. de Santos Dumont – MG.
Juiz de Fora, agosto de 2013.
Vicente de Paulo Clemente