CONSTRUÇÃO NA VIZINHANÇA (EC)

Paraíba, traz mais cimento!

Quem nunca ouviu a frase acima, certamente nunca conviveu com a construção de um prédio ao lado de sua casa.

Maçante e aterradora.

Parodiando o Francisco: “Todo dia eles fazem tudo sempre igual”. Às mesmas sete horas da manhã começa a cantilena. Verdadeiros despertadores. Férias para o rádio relógio. Pode-se desligá-lo e economizar energia elétrica. Não é necessário olhar o calendário para saber se é mais um dia (in)útil ou domingo, dia de silencio matinal.

Trabalhadores da construção civil – e quase todos os outros braçais – devem ser movidos à pilha alcalina recarregável. No início do expediente com a carga toda. Eletrizados. Bem despertos. No ápice do biorritmo. Livres, leves e soltos. Levantaram-se muito cedo, passarem um tempão esperando condução e já chacoalharam no aperto do transporte público.

Talvez para despejar a revolta contida em virtude desses infortúnios, descarreguem todas as suas forças em marteladas e gritaria até acordarem a vizinhança.

Após uns cinco minutos de ataque, param misteriosamente. Devem dar-se por satisfeitos em haver estragado o sono da “burguesada”. Em suas cabeças, talvez corra o raciocínio que os vizinhos não têm nada para fazer, dormem até tarde, não trabalham, têm carro na garagem entre outros benefícios caídos do céu, ainda se obtidos com horas de serão silencioso madrugada adentro.

A carga dos alcalinos decai devagarinho, até um desligamento parcial da hora do almoço, quando param a recarregarem-se numa marmita de ovo frito, arroz, feijão e torresmo à milanesa. Ao final da tarde estão trabalhando numa velocidade de bicho-preguiça ou taturana deslocando-se num galho. Ou seja, igual a minha ao ser acordado por eles.

Dia desses, vencido, sem terapia, o ódio mortal de ser acordado em indesejado horário, decidi prestar atenção em seus diálogos. Quem sabe descobrisse algo de interessante.

Vou aproveitar que é meio-dia...

Hora do rango...

Ainda bem que não tem sirene.

Silêncio no pedaço.

Prestando melhor a atenção, escutam-se passos das botinas sobre o cascalho, rumo ao refeitório. Usando a imaginação, talheres devem estar raspando as quentinhas.

Dá tempo de contar em rápida palavra algumas impressões sobre eles.

Um dos trabalhadores é o Ceará, aquele que me desperta pedindo cimento ao Paraíba.

Cantador de repertório limitado a uma única canção, interpretada pela vozinha típica de vento no canavial. Por falta de dicionário, ainda não consegui aprender o refrão.

Nenhum preconceito, mas não entendo a maioria das palavras que dizem. Parecem-se comigo tentando falar inglês.

Outro é o Pernambuco.

Ascensorista do monta-cargas. Sua lida diária é um sobe e desce infindável, que também cair-lhe-ia bem o apelido de Bovespa.

Temos o Bahia.

Pelos pedidos que lhe fazem, deduzi seja o encarregado da distribuição e transporte de blocos. Ninguém mais apropriado. Mantém firme as tradições e costumes de sua terra natal, antes de Armandinho e Dodô criarem os trios-elétricos.

Mineirinho é o mestre de obras. Quase não se ouve sua voz. Perfeito come-quieto.

Qual a novidade destas descrições, não é verdade?

Engano!

Nesta obra, que espero seja a penúltima no quarteirão, visto haver poucas casas ainda não demolidas no bairro, a situação é um pouco pior.

Ser-me-á inesquecível, por longo tempo, o Perninha.

Ah! O Perninha...

Não sei exatamente de onde ele vem, mas é bem pequenininho. Mirradinho.

Tenho dúvidas se o apelido deve-se ao tamanho nanico ou para diferenciá-lo de algum conterrâneo. No caso, o Pernambuco.

Perninha chegou há poucos dias à obra.

Caboclo gritador. Intermináveis e persistentes. Um carcará. Quando ouvi seu primeiro grito, pensei que fosse de dor. Tivesse-lhe caído uma ferramenta no pé, deslocado o ombro, acertado o polegar com o martelo. Esses acidentes comuns em obras do gênero.

Cheguei a correr ao quintal para verificar o ocorrido.

Em meu curto trajeto, ouvi um segundo grito.

Agonizava?

Nós seres humanos temos uma mania de tragédia, não é mesmo?

Qual o que!

Mal me recuperava do susto causado pelo pensamento, um terceiro gritinho.

O cabra entre os gritinhos esganiçados, dizia: “ Você está em cima... você está em cima”... Não dava identificar se afirmava ou perguntava.

Em cima do que, perguntei-me. Alguém em cima do pé dele? Chamava o colega do andar de cima?

Não perdi mais tempo em conferir.

Sei que a partir da chegada do Perninha, além de acordar cedo, convivo com seus gritinhos. Meu sentimento é que o Perninha tem o prazer de gritar.

Ou gritará de prazer.

Será que o “Você está em cima, ui” é?

Melhor nem pensar...

Ouviram? Ele deu um “ai” agora.

Ui...

Outro gritinho.

Olha o Rodrigues!

Rodrigues?

Exatamente... Era o engenheiro da obra, ordenando o reinício do trabalho.

Sem sirene e pontualmente às treze horas:

Paraíba, traz mais cimento!

Ui... Ai...Ui...Ui...Ui...

Volto a escrever às dezessete.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Inconveniência

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Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 19/08/2013
Reeditado em 19/08/2013
Código do texto: T4441169
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