Felicidade solitária.
"Desde que você cresceu e apareceu, o mundo mudou um tanto mais que nós esperávamos. Montanhas nasceram e morreram, e muitos de nós também. Faço esta carta para você pois venho tentar me redimir quanto um erro que cometi há tempos atrás.
Sei que nada que eu lhe falar conseguirá suprir esse ardor que você mantém no teu peito, mas espero que isto te alivie um pouco; quem sabe até tirando este peso desnecessário de seus ombros cansados.
Você se olhava sorrindo no espelho e pedia apenas que conseguisse passar o dia todo deste modo. Você ajeitava o cabelo e entortava o sorriso. Analisava algumas feições e ficava meio decepcionado com a maioria delas. Mas isso não te abalava. Você saia de casa se sentindo alguém que você não era - mas que desejava ser. A determinação transbordava de seus olhos como as águas em uma barragem numa tarde chuvosa. Ficava admirado como alguém que conhecia tão pouco do mundo e de seus castigos andava carregando tanta sabedoria.
E deste modo você partia todos os dias, pra uma jornada que você nem sabia que se metia. Era uma coisa que já existia pelas estradas da tua vida, mas que nem eu e nem você conseguíamos ver. Todos os dias você dava um passo em direção ao teu futuro e um se afastando dele. Claro que teu maior sonho eram coisas inalcançáveis, mas ninguém nunca teve coragem de te dizer que suas mãos não conseguiriam controlar os elementos da natureza ou algo do tipo. Era até inútil tentar porque não havia pessoa (nem ciência) que tirasse isso de sua cabeça. Deixei você viver aqueles momentos onde, apesar de não ser sua preferência, te faziam flutuar.
A vida nunca foi fácil para ninguém, não é? Você nunca me perguntou sobre ela, mas me sentia questionado pelo teu olhar quando acontecia algo novo. Desde sempre foram raras as oportunidades de escutar sua voz, que ora se fazia rouca, ora sublime. Apesar de tudo sabia que não deveria te explicar muitas coisas, pois era um garoto esperto e entenderia mais rápido do que as outras crianças.
Mas existe uma coisa que eu deveria ter me atentado mais.
Nunca te disse que não é apenas de utopias que se alimenta uma mente. Um pecado que carregarei para sempre comigo pelo meu egoísmo de ver seus olhos carregados de uma felicidade solitária. Por minha causa, você moldou sua vida em uma coisa que não existia no universo fora de sua ingenuidade: malícia.
Qualquer sorriso e meias palavras te cativavam e te iludiam como um demônio tentando se apossar de uma alma. Algumas pessoas insistiam que isto era um dom, mas no fundo você e eu sabíamos que não era. Claro que tentou desenvolver algo que pudesse te fazer enxergar isto nas pessoas, mas foi em vão. Era tarde demais, e o mundo te corrompera pela dor, não pelo coletivo.
De qualquer jeito você ainda acordava todas as manhãs e ia até o banheiro. Porém, não se olhava mais no espelho; já não se importava mais. Não treinava alguma feição e sorria em seguida. Teus desafios diários se tornaram calamidades que você vestia ao passar pelo portão, e desvestia quando ia se deitar. Seu maior poder era passar o dia todo calado. Sua voz ninguém ouvia mais, e você não fazia questão disto também. Não queria ser ouvido nem queria atenção. Desejava apenas que te esquecessem; deixassem em paz.
Naquela mesma paz que você sempre teve, e de repente, desapareceu. Naquela mesma paz que viveu dentro de seu coração por tantos anos, e num estalo de dedos se transformou em dor.
O amanhã havia chego ontem, mas só hoje você partiu. Levou consigo um tanto de problemas que não conseguiu pendurar num cabide qualquer, mas que prometeu que iria se livrar de pouco em pouco pelas esquinas que dobraria.
Endereço esta carta para o fim de sua vida, onde sei que vou lhe achar. Peço-te desculpas por ser responsável por cada passada que você der longe daqui e por tantas outras que der em direção ao desconhecido.
Saiba que minha maior dor, é sua felicidade solitária dar lugar à solidão."