COMER,COMER PARTE II

Como expliquei na ultima crônica, não consigo mais comer carne vermelha. Respeito quem o faça, tenho até inveja de quem come tudo o que lhe é posto a mesa, mas exclui a carne vermelha do meu menu e a decisão foi tomada graças a visita de um fantasma, que não era meu pai, ou o Rei da Dinamarca; e sim o fantasma do meu porco de estimação.

Fui criança de prédio, quando morei em Brasília. Cresci sem quintal e sem horta, mas meu pai, nordestino arretado, não ligava para o espaço apertado em que vivíamos – quarto, banheiro e cozinha na zeladoria dos prédios em que morávamos - e transformava os arredores do prédio em extensão da nossa casa. O espaço entre dois prédios virava terreno para festa junina e palco de aniversários. Havia entre os zeladores, uma amizade e um companheirismo que resultava em grandes celebrações. O nascimento da minha irmã, então, foi um grande evento que reuniu todos os zeladores, suas famílias e também centenas de moradores do Cruzeiro Novo. Meu pai quis fazer um grande banquete e naquela manhã de 16 de abril de 1980, Prático foi entregue em casa. Não era um porco com cara de amigo, nem lembrava o Baby, o porquinho falante; pelo contrário, ele era gordo, grande e fazia um barulho que assustava até os cachorros que queriam se aproximar. Talvez porque eu nunca tive um animal de estimação para enfeitar minhas memórias de infância, eu adotava todos os animais que vinha a ter contado e com Prático não foi diferente, até porque a sua cara de pouco humorado lembrava um dos porquinhos do conto do lobo mau. Ficamos pouco tempo juntos: ele chegou ás 09:00, foi amarrado no portão do prédio ( para espanto dos moradores que não estavam acostumados a animal que não fosse gato, passarinho e cão) e às 11:00, um amigo de meu pai, ele e mais dois outros conhecidos, colocaram Prático dentro de uma caminhonete. A tarefa levou quase uma hora – eu avisei: Prático era um porco elefante – e quando enfim, o porco estava dentro do veículo, entrei também junto e seguimos para um destino desconhecido. O que iriam fazer com o porco era um mistério para mim.

Algum tempo depois, a caminhonete parou em um terreno rodeado de mato e pequenas árvores, na fronteira entre o Cruzeiro Velho e o Cruzeiro Novo. Todos saíram do carro, incluindo Prático.

Eu tinha apenas 06 anos e morando na cidade, não entedia certas coisas do mundo: carne para mim era comprada em açougue e na certa caia do céu, como os peixinhos, que caiam quando chovia. Eu não sabia por que meu pai havia me levado (talvez fosse o fato que minha mãe ainda estava no hospital se recuperando do parto e não houvesse mais ninguém com quem ele pudesse me deixar), mas eu não só estava prestes a testemunhar um assassinato, como carregaria por toda a minha vida, a culpa da cumplicidade.

Continua...