Faces lucrativas do serviço público
FACES LUCRATIVAS DO SERVIÇO PÚBLICO
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 14.08.13)
Quando marcaram para as sete horas da manhã de segunda-feira seu exame sofisticado em um laboratório de ponta na Capital, D. Honorina ficou muito aborrecida porque teria de deixar sua casa na véspera, posto que ninguém pode confiar na BR-101. D. Honorina não tem problema algum para sair de sua toca em Treze de Maio, no Sul catarinense, desde que possa retornar antes da novela das dez. A novela das dez é o seu parâmetro de horário para estar em casa. Assim, e pelo fato de Treze de Maio ser o centro geográfico do Sul, a ilustre senhora circula desenvolta por qualquer cidade da Região em visita a parentes (que ela os tem em todos os municípios, à exceção de Imaruí) e no trato das coisas da caridade e dos negócios. Às dez, está de volta à sua confortável "poltrona de ver televisão", como ela diz, onde se aboleta até o início da madrugada, pelo menos.
Fazer exame de laboratório na Capital logo cedo, portanto, incomodou bastante a respeitável senhora, que fez fortuna exercendo as funções de mãe de prefeitos, vereadores, delegados de polícia e párocos de diversas cidades da região. Seu caçula, Pedro Osório, abandonou a criação de ovelhas para dedicar-se ao pastoreio de almas numa igreja neoevangélica; concentra-se agora no plano de negócios para fundar a Primeira Igreja das Treze Faces para a Máxima Glória do Cristo Senhor (que exigirá a observância de treze mandamentos, o rebento de Honorina Osória crê faltarem leis imprescindíveis ao decálogo de Moisés), a primeira vez que Treze de Maio, à moda de um mini-Vaticano, sediará empreendimento do tipo.
A ventura de D. Honorina (chamada de D. Honestina pela ironia dos desafetos da família) é o domicílio, na Ilha, de Manoel Osório, único dos Osórios que não voltou para o Sul depois de fazer faculdade, sobrinho com quem sempre se deu muito bem e em cuja companhia passou horas agradáveis da tarde de domingo no Parque Ecológico do Córrego Grande. Ali, em meio às alamedas arborizadas e aos lagos de jacarés, tartarugas e tilápias, chegou-se a eles um amigo do sobrinho (na verdade, sobrinho-neto, relação de parentesco que ela esconde) que, pelas tantas, começou a relatar sua indignação:
- Da janela do meu apartamento, percebem?, vejo um caminhão despejando entulho próximo às pontes, junto a um grande painel publicitário que lá existe. Liguei para a companhia municipal de limpeza a fim de denunciar o abuso que ocorre todo dia, disseram-me que era assunto da vigilância sanitária; nesta, não atendeu nenhum dos cinco números que me deram e o caminhão continua lá, descarregando imperturbável. Sabem? É o mesmo que aconteceu na minha casa de praia: o vizinho começou uma obra irregular, que me prejudicava, dei queixa na Prefeitura e durante seis meses não aconteceu nada, a obra não parava nem na hora do almoço. Sabem o que descobri? O fiscal esteve lá e levou 12 mil para ficar calado. O pior é que cada vez que eu ligava para a fiscalização diziam que estavam tomando providências, o dinheiro certamente numa caixinha comum. Cheguei à triste conclusão de que uma denúncia, hoje, em qualquer área do serviço público, nada mais é do que indicação segura de onde buscar propina fácil. Além disso, se insistir muito a gente fica marcado, sujeito a pressões de toda ordem, pois sempre há um figurão por trás de cada safadeza dessas.
- Moço, onde é que você vive? - interrompeu-o a sábia mulher. - Como você pensa que a vida é? Como imagina que as pessoas ganham dinheiro?
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Amilcar Neves, envolvido com a criação de uma nova novela, é escritor com oito livros de ficção publicados, alguns dos quais à venda no sítio da TECC Editora, em http://www.tecceditora.com.
"Somente teremos discussões salutares neste País se respeitarmos a História."
Eu Mesmo, em 17.04.13, respondendo a e-mail sobre golpe de 1964 e ditadura de 21 anos.