O cronista em cena: eis a questão.
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Essa mania de dividir, classificar, rotular as pessoas, as coisas todas... É um novo toc coletivo. Um vício de linguagem, da linguagem que oprime e segrega. Disse o filósofo: “temo que não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática”. Temo que jamais nos desvencilharemos de uma gramática que mata de fome um sujeito sobre quem se fala alguma coisa e que vai guardando seus ossos de relíquia no exagero do esquecimento. Temo que, por desgraça e rigidez, essa armadura inviabilize o êxodo desse tipo de domínio, de um discurso que entende que você e eu somos sujeitos e que, inevitavelmente, morreremos sujeitos no imobilismo dessa distinção do ser, julgados e separados sem ambivalência.
Vou dar um exemplo. Você entra no elevador e lá está escrito “A senhora Maria da Silva Pereira não é mais funcionária do prédio.” Duas questões graves. A primeira questão é a falta de privacidade que nos torna todos vitrines de vidro extremamente desinteressantes. Uma mania de limitar o ser quando dito por outro. A segunda questão fica por conta do uso e do abuso de dizer que Maria está expressamente demitida numa vitrine de vidro. Maria, Maria da Silva Pereira está demitida. Maria não é mais funcionária do prédio. Maria não pertence mais ao quadro de funcionários. Maria está no olho da rua. E ponto. Quem é o sujeito? Ora, o sujeito é a truculência, a brutalidade do cuspe. A boca que classificou o sujeito dessa frase cospe em nossas caras com escárnio. E ainda coloca Maria na condição nominal da fila do auxílio desemprego. Maria não é mais. É menos. E é mais uma.
Hoje pela manhã eis que um cronista, que anda sempre desavisado, se deparou com um papel de carta no prédio em que mora, um papel que anunciava que Maria não estava mais lá. No elevador “social”... Será o outro anti-social? Mas lá no elevador social tem uma espécie de mural de avisos de vidro onde um homem baixo e de bigodes que se assina “sindico” coloca mensagens, informações e bizarrices. Na coisa envidraçada até mesmo um aviso de dedetização espanta com seus ratos baratas e cupins, todos escritos com caneta vermelha: "faça agora!" Quem inventou esse pombal chamado prédio, edifício, condomínio, de certo não poderia imaginar a solidão que essa gaiola causaria à humanidade. Uma grande jaula humana boiando na cidade vertical. O cronista sente-se mesmo como se morasse numa espécie de ensaio sobre novas cegueiras: a senhora do quarto andar, a menina dark do quinto, a outra menina, a vizinha, o médico do sexto e a mulher do médico...
Mas ali, em pé, diante do evento escrito no elevador, o cronista não sabia, ao certo, se ria ou chorava. O aviso apenas dizia que Maria "não era mais". E por, quem sabe, ocasional e mera bobagem, trazia no mesmo papel de aviso a imagem singela de um beija-flor azul. A contemporânea invisibilidade de Maria fez o cronista amar loucamente o beija-flor azul: tão preso, livre, solto, subindo e descendo de elevador, numa espécie não tão rara nem tão extinta de angústia, enfeitando a despedida de Maria, numa transgressão estranhamente ilógica. O cronista, num gesto totalmente súbito, rasgou o papel e roubou o beija-flor para si. Quem era a Maria? Fez então seu jogo de quebra-cabeça. Maria era a pessoa de sorriso largo, essa coisa rara e em extinção. Maria tem Ana de filha e dois netos que moram com ela. Criou e cuidou de três irmãos no interior de Minas, e fez tudo isso sozinha, porque "mãe e pai morreram cedo e não deixaram tostão". Maria que namora o Geraldo e que vai pra seresta cantar "música de qualidade". Maria, aquela que não leva desaforo pra casa, que não tem papas na língua. O cronista pôde assim sorrir de lembrança ingênua.
Sobre Maria, o síndico disse ao cronista: "ela não é mais funcionária do prédio" nem no nome nem no pronome. E disse mais: "ela não sabe o lugar dela." O lugar dela. O lugar do sujeito dela. E o cronista coçou o queixo, como se fosse muito inteligente, e perguntou ao vazio: e se o sujeito sempre tão determinado quiser um dia cobrar as favas contadas de seu ressentimento? Em tempos de guerra todo sujeito é inimigo de todo sujeito? Em tempos de guerra, nosso sujeito desconfiado voltará correndo para trancar portas, guardar seus pertences nos cofres e armários? E a vida prosseguirá como sempre? Miserável, bruta e curta? Miserável, bruta e longa? Sim, talvez, como bruto, miserável e rude é o verbo que separa o sujeito em duas espécies de homens: os que são e os que não são. Sim, Leviatã sempre poderá vir nos assombrar com seus sujeitos sujeitados. E se crescer assim, de repente, comendo, mastigando nossas carnes, se refestelando com as gorduras do nosso ódio, da indiferença, a mesma que nos faz prosseguir mesquinhos ou tolerantes, tolerando os outros em soberba e superioridade, comeremos Leviatã no espetinho. Humanos e desumanos. Vizinhos sem nome, morando no mesmo prédio-Terra onde Maria hoje é o sujeito que não é. Mas se as margens seguem violentas aprisionando o beija-flor no papel...
Patrícia Porto