A corrupção do bem
Os nobres deputados do Distrito Federal aprovaram na última semana a criação da corrupção do bem. Não podendo tolerar mais os escabrosos desvios de dinheiro público na capital federal, os distritais concordaram que o melhor meio de combatê-los seria proporcionar também ao cidadão comum a possibilidade de se beneficiar com o esquema. Para alcançar tão longânime objetivo, decidiram por unanimidade oferecer um prêmio a quem denunciar casos de corrupção, e que consiste em 10% do dinheiro desviado.
A população de Brasília compreenderá que o dízimo desse dinheiro seja então desviado para o bolso de uma pessoa de bem, alguém que pesou todos os inconvenientes que a sua denúncia poderia trazer, mas por fim foi convencido pelo generoso argumento dos deputados, e observou comovido que ainda vale a pena ser honesto neste país. Também não haverá quem encontre reparo na remota possibilidade do denunciante já ter se envolvido ou se beneficiado em casos semelhantes, de modo que não será nenhuma extravagância cedermos a ele mais uma porcentagem de dinheiro público.
Sabendo que, à força de tão poderoso argumento, fatalmente surgirão muitos cidadãos dispostos a exercer plenamente a sua honestidade, os ilustres deputados, mostrando estarem realmente à frente do seu tempo, trataram de também decidir de que modo ocorrerá a divisão do dízimo em caso de várias pessoas denunciarem o mesmo caso de corrupção. Assim, ficou estabelecido que o primeiro a denunciar terá direito a 70% dos recursos da corrupção já previstos para o combate à corrupção. O segundo e o terceiro a denunciar dividirão os outros 30%, enquanto que o quarto, o quinto e todos os demais terão que se contentar com a sensação de estar fazendo a coisa certa.
Argutos observadores do comportamento humano, os distritais perceberam que o único meio de fazer com que o homem se interesse pelo coletivo é fazê-lo se interessar pelo individual. E o individual normalmente não vê problema algum em ter uma inesperada fonte de recursos financeiros, ainda que sejam 10%, pois em geral desviam-se somas avultadas, e os 10% viram facilmente muito dinheiro, donde se percebe que a Câmara Legislativa do Distrito Federal está ao mesmo tempo acabando com a corrupção e promovendo a inclusão social.
Como devidamente lembrado pelos deputados, em geral as pessoas sentem medo de denunciar casos de corrupção, pois ficam expostas e podem ter a sua segurança ameaçada. Em boa hora veio essa proposta de premiação, pois bem sabemos que com ela já não existe mais o que temer, considerando que normalmente as pessoas com muito dinheiro são também as que mais têm segurança, e a consciência disso se torna um argumento tão decisivo que, quem estava em dúvida, irá correndo denunciar até a própria mãe, se preciso for.
Dito isso, é preciso reconhecer os elevados ideais que norteiam a atividade legislativa no Distrito Federal, cuja iniciativa já começa a ser imitada em cidades como Curitiba, pois também por lá parece haver cabeças iluminadas e interessadas em resolver de uma vez por todas tão nefanda questão como essa da corrupção. Nem que seja preciso comprar meio mundo, esse mal será enfim extirpado do nosso meio.