MILAGRES EXISTEM

Minha mãe me deu o nome de Francisco das Chagas, que é o mesmo São Francisco de Assis, canonizado pelo Papa Gregório IX, em 16 de julho de 1228. Ela me dizia ser um nome forte e que esse nome iria me proteger pelo resto da vida. Mesmo descontente, cresci com esse nome, mas ninguém me chamava de Francisco das Chagas. Ora me chamavam de Chico, ora de Chiquim, ora de Chaguinha, ora de Das Chaga, e por aí vai. Confesso que eu odiava esse nome. Minha mãezinha quase sempre vinha me consolar, dizendo que nem toda pessoa era merecedora de usá-lo. Embora isso não me convencesse, eu via o brilho nos olhos de minha mãe e me resignava. Além do mais eu sabia que não era merecedor do nome Francisco das Chagas. Eu vivia jogado no mundo, comendo, bebendo, fornicando e lambendo os beiços. Cresci sem ter Fé alguma, sempre odiando o nome que minha mãe me dera.

Uma vez fui até um juiz na cidade, a fim de trocar o nome. Ele sorriu com uma benevolência franciscana e me convenceu de que não era tão fácil assim, trocar o nome de batismo. Ele também se chamava Francisco das Chagas. Isso pôs fim à minha relutância e a vida seguiu em frente, como é para ser. Um evento, porém, mudou a minha miserável e mundana vida. Depois dessa experiência, tal e qual Francisco, me despi das roupas da arrogância e da luxúria.

Eu frequentemente participava de enduros de motos no sertão do Ceará. Uma vez me perdi na trilha, no meio do sertão. Já estava anoitecendo e minha moto simplesmente parou. Eu estava ali, no meio do nada, completamente perdido e ariado. A noite escura pairava sobre mim e o silêncio da estrada era imensamente agonizante. Saí empurrando a moto, que a cada passo ficava mais pesada. Vi ao longe, o farol de um carro que se aproximava em minha direção. Achando que era a minha salvação daquela situação, me enganei no momento em que o carro passou por mim e parou um pouco mais adiante. Vi quando quatro homens saíram do carro, de armas em punho. Vi quando a luz da lua reverberou no metal de uma pistola. Já tinha ouvido falar que naquelas estradas, eram comuns assaltos e assassinatos. Confesso que naquele momento me sujei nas calças. Senti quando o mijo e a merda desceram pelas pernas. O suor banhou-me todo o corpo, deixando as roupas literalmente encharcadas. Lembrei-me de minha mãezinha e uma lágrima quente desceu no rosto. Deu para sentir o líquido salgado na boca. Mesmo sem ter fé, supliquei a São Francisco das Chagas para me livrar da morte certa. Trêmulo, com os olhos fechados, entoei baixinho uma ladainha de São Francisco que minha mãe sempre cantarolava.

São Francisco pobrezinho,

Santo e sábio no viver,

Pai dos pobres deserdados,

Vem teus filhos proteger

Eu não ouvi mais nada e também não enxergava nada. O silêncio era assustador. Uma forte ventania começou a soprar. A estrada se cobriu de poeira e de vez em quando eu via as árvores se contorcerem com a fúria do vento. Um enorme pé de angico que tinha na beira da estrada ficou tão envergado pelo vento que a copa chegava a tocar o chão, tão violenta era a ventania. Assustado, tateei pelo mato em busca de um refúgio. No meio da poeira e da incessante ventania, vislumbrei a entrada de uma gruta. Entrei e ali mesmo desmaiei, só recobrando os sentidos no dia seguinte, quando o sol já ia alto. Ao sair da gruta onde me escondi, tomei um tremendo susto. Ao olhar para o alto, vi que estava em frente a uma enorme estátua de São Francisco, feita de concreto. A gruta onde eu passara a noite, onde eu tinha me escondido, não era uma gruta. Eu tinha me escondido, justamente, entre os dedos dos pés descalços da estátua de São Francisco de Assis.