Testamento de uma Mendiga

Aos meus pais, deixo meu desprezo, tamanha é minha revolta pelo abandono;

Para as madames de nariz fino, deixo o odor de minha carne a desintegrar-se, para que suas narinas afinem-se até cerrar;

Às senhoras de cruz no pescoço, o meu ‘muito obrigado’. Sei que não podiam levar-me a suas casas e tratar-me como igual, porém nunca hesitaram em dar-me os restos de suas refeições mal temperadas;

Aos cães da rua, meu amor. Nada faz no mundo maior companhia a um ser sem lar do que um cão que sofre do mesmo abandono. Não há maior família do que as matilhas que vagam pela noite e por fim deitam ao teu lado;

Às mulheres de boa vontade, meus sinceros agradecimentos. Suas roupas sem serventia me serviram muito bem, e mesmo folgadas ou apertadas foi o que salvou-me do frio;

À juventude, minha pena. Vocês e seus cigarros acesos, seus copos cheios de álcool e suas cabeças repletas de rebeldia não chegarão a lugar algum, e ficarão presos em sua demência juvenil até seu fim repleto de arrependimentos;

Aos passantes generosos, que Deus lhes pague. Seus míseros dez centavos foi para mim o pão que salvou-me da fome;

Aos sapientes, não lhes deixo meus poucos livros, mas minha gratidão por tê-los jogado fora. Me foram de grande serventia;

Para a lixeira, deixo meus pertences que estarão ao meu lado quando meu féretro for removido e jogado em uma vala de indigentes;

Ao mundo, a minha experiência de vida, que de tão vasta nunca será alcançada pelos que enlouquecem durante o dia e dormem confortáveis e seguros durante a noite;

Por fim, como não posso deixar, levo comigo as boas memórias e as esperanças, que me foram as únicas razões de viver.