O delírio de Ramon

Em mais uma de suas longas madrugadas de insônia, Ramon se distrai na cozinha matando formigas doceiras na bancada da pia e na porta da geladeira. Elas correm desesperadas, procurando um esconderijo; às vezes desaparecem num buraco ou numa fresta do armário, mas quase sempre ele as pega. E mata. Esfrega-as entre os dedos até transformá-las numa pasta seca cheia de fiapos de pernas, antenas e pequenas lascas de abdômen e tórax. E cheira. Adora o cheiro ácido de formiga doceira espatifada.

Mas o que ele quer mesmo hoje é dormir sem ter que tomar remédio. “Hoje não tomo”, ele sempre diz, mas acaba tomando meio comprimido, ou um inteiro, depende do estado em que se encontra – se está tremendo muito, se fecha os olhos e vê estrelas piscando, se a mandíbula trava e ele não consegue abrir a boca, se sente cãibras pelo corpo: qualquer um desses sintomas é, para ele, indício de que seu velho amigo das horas mais terríveis de solidão e desespero será acionado por inteiro. Falso amigo... E é só tomá-lo e esperar trinta minutos. Ramon simplesmente apaga.

Não toma o remédio ainda. Liga a televisão. Numa cena, vê centenas de ratos bebendo leite no que parece ser um prato gigante. “Que coisa extraordinária”, pensa Ramon, com os olhos vermelhos esbugalhados grudados na tela. A reportagem diz que rato é sagrado naquele país. Imagina-se pegando um dos grandes pelo rabo, levando-o à altura do rosto e lambendo seu focinho sujo de leite. Começa a tremer de aflição e muda de canal.

Outra cena assustadora: um pastor, apóstolo ou missionário de uma dessas igrejas mundiais ou universais pedindo dinheiro a seus fiéis. “Para alguns, Deus pede só cem reaizinhos, para outros, quinhentos, mil, dez mil...”, diz o larápio, e Ramon começa a tremer muito, dos pés à cabeça. “Não pode, meu Deus... isso não pode estar acontecendo”, diz, e tenta acender um cigarro, mas o isqueiro falha três, quatro, dez vezes, e sua mão já não consegue segurá-lo, está crispada, dura como pata de macaco embalsamada; sua boca não abre mais, seus olhos começam a piscar freneticamente, a cabeça a balançar para frente e para trás, como se tomada por um espírito infernal.

Ramon está em crise. Precisa do remédio. Tenta se levantar e ir até a estante para pegá-lo, mas se desequilibra e cai no chão, bem em cima do controle da televisão, que é acionado pelo tombo e muda o canal.

Caído sobre o tapete, Ramon olha para cima e assiste a uma cena grotesca: meninas de cinco anos em trajes de gala, de salto alto, cheias de pintura, os cabelos alisados com chapinha ou armados de laquê, participando de um concurso de miss infantil.

Não aguenta o choque e entra em convulsão. Treme como se morresse numa cadeira elétrica, os olhos prestes a saltar das órbitas; mas mesmo assim consegue ver a sala, a televisão, a estante, o sofá. De repente sente a aproximação de alguém: uma mulher vestida de branco, que lhe aparece como um fantasma, segurando uma espada, o olhar de justiceira dirigido a ele, Ramon (sua vítima!), que, incapaz de reagir, aguarda o seu destino. Ela lhe diz: “Cuidarei de você, querido”, e se aproxima. Com a mão esquerda, estica o pescoço de Ramon sobre uma almofada, puxando-o pelos cabelos, e, com a direita, corta-lhe a cabeça.

Antes de mergulhar na escuridão da morte, Ramon ainda vê a mulher, que o encara, segurando sua cabeça decepada pelos cabelos. Sorrindo, olhando-o nos olhos, ela sussurra: “Agora você está livre”.

Ramon acorda de seu delírio com a esposa tentando desenrolar sua língua; aos poucos volta ao normal, seu corpo relaxa, e logo sente o espírito apaziguado, leve. Seus filhos também estão ali, cuidando dele. Em silêncio, vive aquele amor. Está bem agora.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 10/08/2013
Reeditado em 10/08/2013
Código do texto: T4428222
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