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DE DORES A MEXERICAS (Crônica do dia a dia)



A menina, suave e delicadamente passou a mão na cicatriz que trago no  canto da boca. Perguntou: “O que é isso, vovô?”

--- Isso faz parte das peraltices que fiz quando era um pouco maior que você. Tornei a ela, sorrindo.
--- Você era custoso, vovô?
--- Não muito. Respondi-lhe meio sem graça.
--- E como foi que o senhor arrumou isso?
Comovido com o interesse da netinha puxei-a pelo braço, oferecendo-lhe a cadeira ao meu lado.
--- Senta aqui... venha, vou lhe contar.
Com tal disposição, rememorei meus oito anos na Maranhão; fiz-me lembrar de pessoas que muito sumiram da minha vida e, só em ocasiões assim, poderia relembrá-las. Aonde andará Elenice e Elenita, tão pequenas quanto eu, seus pais que, na volta de mais de cinqüenta anos não os vi mais!
Naquele fatídico dia, em companhia das duas meninas, colhia os frutos de sabão de macacos em cima dos frágeis galhos da árvore. Sabão de macacos, para quem não sabe, são aquelas frutinhas de casca rugosa, semitransparentes a proteger a polpa gelatinosa a qual envolve o pequeno caroço preto no centro do fruto; são pequenas e raramente seu tamanho excede a dois centímetros. Ao romper o envoltório do fruto tem-se acesso ao conteúdo que é um sabão natural. Entretínhamos a jogar, um nos outros, a farta espuma produzida numa bacia. Era um de nossos passatempos.
A árvore não era lá muito alta e a minha ingenuidade e afoiteza infantil desconheciam a natureza de sua madeira quebradiça. Ao aventurar-me num galho mais fino este cedeu. Vim abaixo. Em determinado local do tronco, certo  galho cortado há tempos, deixou ali pontiaguda forquilha a  qual  meu rosto bateu; o choque ocorreu logo abaixo da articulação da mandíbula, atravessou os tecidos e levou um dente. Felizmente a madeira apodrecida cedeu evitando ferir-me com maior gravidade.
No chão, não dei conta do ferimento; acomodou-me um torpor. A princípio não sangrava. Arrancou-me, porém, daquele estado, o pânico que se apoderou  das meninas ao mirar o ferimento exposto. O sangue viera então a banhar-me o rosto e o peito. O que se viu a seguir foi tudo muito rápido: alarmes dos adultos, o desespero de minha mãe, e logo me vi no hospital dos Rassi sendo costurado.
--- Doeu muito, vovô?
--- Você não vai acreditar, mas o vovô não sentiu dor nenhuma!
--- Não?!!! Mostrou-se surpresa.
--- Ferimento dessa ordem atordoa a vítima, é como se o cérebro desligasse para proteger o indivíduo... creio que senti mais dores na hora de tirar os pontos, que propriamente na hora do ferimento. Expliquei-lhe algo nesse sentido.
Com tal depoimento via em seus olhinhos certo ar misto de   complacência e incredulidade, embora não ousasse contrapor-me. Mas ela queria mais.
--- Qual foi a maior dor que você já sentiu, vovô?
--- Olha... (titubeei). Na verdade não me ocorria nada de excepcional além dessas dores corriqueiras.  Havia, entretanto, um caso de meu conhecimento que julgava ter sido fonte de extrema dor.
--- Você já observou que ao seo Benir falta-lhe uma vista, não é? 
Ela assentiu.
--- Pois bem... vou lhe contar a estória para que você tire a lição e nunca haja afoita caso lhe ocorra algum incômodo a lhe invadir os olhos; nesse caso, não se deve agir com precipitação nem violência, certo?... Então vamos lá. Por ocasião de 1970 ele morava na fazenda. Certo dia, retornando sedento à sua casa, mal acabou de amarrar o cavalo na trava do alpendre sua mulher o alertou para tirar uma novilha do roçado do vizinho. Incontinenti, apertado por sua natureza sistemática, deu meia volta e galopou rumo ao indicado. O local não era longe, encravado em meio a uma proteção de árvores cuja entrada ao roçado se dava onde elas raleavam. Contou-me ele que, ao se aproximar levou a mão afastando determinada galhada a impedir sua passagem; mal atravessou o empecilho algo pousou sobre seu olho esquerdo levando-o, estabanado, a meter o tapa no intruso incômodo. O gesto veio a lhe custar caro, culminando no esmagamento de um bruto marimbondo cavalo, provável hóspede daqueles galhos afastados. Esse marimbondo, pra você ver, tem um voejar desajeitado de tão grande que ele é... pois bem, metade das vísceras do infeliz ficou nas mãos do seo Benir, e a outra metade desgraçadamente dentro do seu olho; o impacto levou o invasor a cravar-lhe o ferrão na bolota do olho... na hora da picada --- disse ele --- sentiu literalmente um ferro incandescente de marcar o gado lhe atravessar a cabeça vindo irradiar fogo por seu corpo inteiro. Não se lembrava de como voltou pra casa, lembrava apenas de se ver rolando de dor no relvado do quintal, até que, finalmente o socorreram num hospital. O ferrão do bicho que inutilizou seu olho ele ainda traz consigo, é de meter medo!
Na ocasião que me contou a estória fazia chacota de, certa vez na fazenda do rio vermelho, um peão borrou de dor com o pé perfurado pelo ferrão de arraia. No seu caso só não fez o mesmo porque não tinha merda pronta, pois a dor que sentiu no olho ele a julgava ter sido maior.
--- Impressionante, vovô!
--- Sim, são fatos impressionantes... mas vamos falar agora de coisas mais agradáveis, tá bão?... Que tal irmos ao quintal catar umas mexericas?
___ Oba!
Vi, então, seus olhinhos sagrados e perfeitos brilharem de contentamento.
 
 
 
 
moura vieira
Enviado por moura vieira em 07/08/2013
Reeditado em 16/03/2021
Código do texto: T4423682
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