DDD - Diário de Derrotas [38]

23h35m

Você chega bêbado depois de 3 horas dormidas durante a noite, 4 horas despendidas dentro de transporte público e 10 horas de expediente. Você chega mole, trôpego, afoito por repousar todo o comprimento da sua carcaça num abraço à cama. Você dorme no minuto seguinte.

06h50m

Então você acorda com o despertador. Parece que foi há 5 minutos que deitou para dormir. Mas, apesar da impressão de um cochilo, você sente o corpo descansado, e um arrepio de bom humor sobe pela espinha e te alarga uma sorriso preguiçoso.

Então você comete o erro de sair da cama.

06h51m

Sabe aquele cereal matinal especial que você atravessou a cidade para comprar, pagou o olho da cara, e não pode deixar largado em qualquer lugar - como um armário de cozinha, por exemplo - por que divide o teto com pessoas que são capazes de beber uma caixa d'água de Coca-Cola em cinco minutos por pura gula? Aquele que você manteve ensacado, hermeticamente fechado e sem ar, meteu em sacolas pretas e guardou dentro da sua gaveta de cuecas? Aquele que segura sua fome por um período decente de horas e que te regula o intestino? Sabe. Eu sei que você sabe. Porque você abre e gaveta e estão lá as sacolas pretas. Vazias.

06h52

Um seriado de televisão aberta lembrou você dos tais cinco estágios do luto.

Negação: você se nega a acreditar que alguém pode ter tido a pachorra de entrar no seu quarto, abrir sua gaveta, comer um kilo de cereal em um dia e ainda ter deixado a sacola de souvenir. Você inventa que guardou em potes e colocou num lugar mais apropriado a alimentos. Você não quer crer nisso.

Raiva: tão cedo, tão logo as pessoas da casa dormem. Devem ter acabado de ir dormir. A sua vontade cega é de jogar óleo fervente no rosto adormecido delas. De acordá-las no tapa. De afundar um extintor no crânio delas.

Negociação e barganha: você barganha com seus nervos. Você diminui o desaforo a quase nada quando se dá conta do instinto assassino e projeta uma posição fetal no chão duro escarrado e cagado de uma cadeia, com 20 anos de prisão nas costas por ter perdido a cabeça por causa de umas rodelinhas açucaradas.

Depressão: a depressão oriunda da picuinha nova ressuscita um milhão de outras picuinhas, igualmente pífias e contundentes. A cobra morde o rabo. Você está dentro de um vórtice holográfico se fodendo sendo fodido e vendo o passado fodido projetando um futuro fodido.

Aceitação: você toma um banho com fome e raiva, vai gradativamente se acalmando e tenta fazer as contas de quantos são os dias restantes que compõem sua estadia nesse lugar odioso em que você mora.

07h20m

Depois de ter posto comida aos gatos e cachorros, depois de ter trocado a água dos bichos, depois de ter ignorado parcialmente as merdas deles, depois de ter tomado um banho sem shampoo, você sai de toalha e não acha roupas de baixo. Com o pinto balançando, solto, o cabelo pingando e o vento frio que entra por baixo das portas suscitando um funga-funga sem fim do nariz, você descobre que a sua única calça limpa está com uma enorme mancha de mostarda da porção de batatas fritas da noite anterior. Só tem a calça social que você não gosta de usar. O sapato de couro safado, preto, que espreme os artelhos. Dentro de um sapato está uma meia. Dentro do outro, nada. Só um pé de meia preta. As outras meias são de um marrom muito escuro ou marrom muito claro. Sua noção de moda é a mesma noção de moral que um estuprador inveterado tem. Dá de ombros e usa o que tem.

07h45m

A cerca de cinquenta metros do ponto de ônibus, lá está a sua lotação vindo. Você já está atrasado, e perdê-la significa mais quinze minutos de atraso. Você corre com seus estilosos e empoeirados sapatos.

Todo aquele asseio do banho sendo jogado no limbo.

08h20m

Você chega na estação de metrô. Na penúltima estação da linha de metrô mais lotada do planeta. Você e mais um bilhão de pessoas. Você está atrasado.

Fila na escada rolante. Fila na catraca. Fila pra descer a escada rolante até a plataforma. A plataforma apinhada e trens dos dois lados fechando as portas assim que você chega na frente delas. Do lado direito, para o Centro. Vem cheio, vai cheio, vai enchendo ininterruptamente - tal qual um intestino fomentando excremento. Até que, dez doze ou onze estações depois, na Sé, a pressão intestinal é tanta que o esfíncter cede e a merda (a gente toda) sai explodindo, pincelando o linóleo emborrachado da estação de couros cabeludos vermelhos, pretos, loiros e raspados, uma enorme e bela cagada humana.

Do lado esquerdo tem a possibilidade de ir sentado até a Sé. O sistema do metrô, como eles mesmos já explicaram em seus monitorezinhos, funciona como um carrossel. Vai girando e girando e girando. Mas, às vezes, o sistema é alterado: trens premiados que, em Itaquera (onde fazem o giro, passando pela garagem, para retomar o trajeto), batem e voltam. Então você tenta. Consegue se sentar. Caso o trem bata e volte, conseguirá dormir. Caso não volte, estará mais cinco minutos atrasado e percorrerá o trajeto em pé, com mais uma estação de lambuja.

O trem não volta.

Os cinco minutos de atraso se transformam em mais vinte minutos de atraso.

Você lê numa rede social: "FAMILIA UM PRESENTE DE DEUS EM NOSSAS VIDAS".

Você pensa: queria que meu Deus fosse o mesmo dessas pessoas.

Você pensa: Um presente que se assemelha mais a uma carta de anthrax que o carteiro entrega todos os dias já violada e chacoalha na minha cara.

Você está em pé, sem livro, irritadiço e com fome e, duas estações depois, é agraciado com um par de gralhas plantadas ao seu lado.

Apenas um lado do seu fone de ouvido está funcionando.

10h01m

Depois das duas baldeações e de aguentar o porteiro piadista e retardado mental, depois de ter perdido o elevador por um milésimo de segundo, depois de ter sido interpelado com papo furado sobre trabalho antes mesmo de conseguir alcançar o cartão de ponto, você consegue bater o ponto. Com sessenta e um minutos de atraso.

As pessoas perguntam se está tudo bem.

Porque sua cara está péssima e você está de roupa social.

Perguntam porque querem saber por que você se atrasou, mas não têm coragem de uma formular algo mais direto.

Está tudo bem.

É só mais um dia.

Nada de anormal.

Tudo dentro do padrão da normalidade.

Você responde.

É só mais um dia de bosta a ser vivido e suportado.

Novidade nenhuma.

10h30m

A impressão de estar esquecendo alguma prioridade é constante.

Você vai carimbando as sessenta notas fiscais que emitiu no dia anterior enquanto tem gente acordando triste porque acordou cedo demais.

Usando dois carimbos, você tem que carimbar a mesma nota duas vezes. Um total de cento e vinte viradinhas de folha, cento e vinte batidas na almofada que suja os nós dos seus dedos, e cento e vinte batidas nas folhas do recibo.

Você faz isso enquanto alguém acorda, empanzinado de cereais especiais, e larga um barro na privada do seu banheiro preferido da casa e não dá descarga.

Também tem uma planilha que tem que ser grampeada na nota fiscal.

Ela precisa ser carimbada.

Você carimba mais sessenta vezes

Depois, juntas nota e planilha e grampeia. Sessenta grampeadas.

Como um pai que ergue o filho diante do rosto e aprecia sua beleza, você ergue o calhamaço de notas fiscais e olha os dados: o número da nota, o valor, a data, o número do contrato, a data do rodapé.

Todos os dados que você preencheu a mão.

Um por um.

Sessenta vezes.

Enquanto alguém, lá na Zona Leste, na sua casa, na cama, no quinto sono, rola pro lado e peida.

11h00m

Com uma mistura de sono, aborrecimento, tenesmos, fome, sede e oligúria, você utiliza todos os parcos recursos que possui para sorrir e é diplomático sem parar. Sentindo que morre um pouco por dentro a cada vez que seu nome é pronunciado, você inspira o ar, exala gás carbônico, e vai vivendo angustiado e preso.

13h30m

O dia é terça-feira. O horário é do almoço. O cardápio é o mesmo das outras terças-feiras.

A sua dieta é outra.

Você enche o prato de soja cozida, beterraba, cenoura ralada, tomate, alface.

Pega duas colheres de arroz integral e uma de feijão. Dois filés de frango.

Essa é sua dieta de proteínas.

Aí você pega um pedaço de lasanha. Uma concha de batata frita. Uma coxinha. Um pedaço de rocambole de chocolate. Linguiça frita. Pastelzinho.

Sua dieta foi pro inferno mais uma vez.

Sua meta de comer pouco e gastar pouco foi atrás.

Pede o mesmo suco. Senta na mesma mesa. Olha as mesmas mulheres. O mesmo apresentador gordo do programa escroto da TV fazendo chacrinhas com famosas cujo único talento que desponta é o cu grande.

Come bovinamente. Metodicamente.

Escreve no papel de seda:

"Um cara veio tentar me assaltar. Olhei para os lados; havia ali uma roseira. Arranquei uma rosa pra ele; abraçamo-nos e ficou tudo bem".

Ri sozinho. Bem imbecil.

Escreve no papel de seda:

"Havia ali um rapaz encapuzado e transtornado, dando uma chave de braço e pressionando o cano da arma de encontro à cabeça da refém. Falei: 'cara, calma'. Desenrolei uma cartolina com os dizeres "Sem violência!". Prometi carinho e roupa lavada. Ficou tudo bem."

Você se sente reacionário, mesmo não sabendo o significado da palavra.

Acaba de comer.

Troca as mesmas amenidades de sempre com o careca do caixa.

Paga. Pega um copo de chá. Espera passar alguma mulher gostosa pra subir a rua atrás.

Na picadilha.

Cuzão, você.

14h31m

Você bate o ponto de retorno. Não depois de ter tido que lidar com pelo menos três piadinhas sobre algum grão de poeira microscópico que resolveu assentar no bico do seu sapato.

Suas tripas começam a fazer seus trabalhos nojentos e naturais.

Mais quatro horas de expediente.

O trecho de uma música que se repete na sua cabeça: "A coma might feel better than this".

18h31m

O expediente acaba mas você prefere que seja o oxigênio do planeta, mesmo. Contenta-se em tirar os sapatos e botar os tênis de correr, passar o desodorante no sovaco, escovar os dentes e ir pro metrô.

19h16m

Já era para você estar na metade do caminho. No Tatuapé, pelo menos. Mas, não. Você está na República há mais de meia hora tentando embarcar. Agora, neste exato momento, depois de ter perdido a oportunidade de entrar no trem que acabara de sair, graças a um boliviano que resolveu ficar plantado na sua frente bloqueando a passagem, você tenta contar quantos dias ainda restam na cidade onde até o Diabo faz o sinal da cruz quando ouve o nome.

19h25m

Você consegue entrar. Depois de quase uma hora fora do escritório, você percorreu coisa de dez quilômetros. É a velocidade média que você corre na esteira quando está com preguiça. Com preguiça.

O boliviano que te atrasou a vida está atrás de você, te encoxando e exalando mau cheiro.

Do seu lado direito tem dois rapazes com uma conversa que pede uma surdez.

Seu fone de ouvido só funciona de um lado.

20h30m

Agora você está parado num túnel que não sabe o nome e que desemboca na avenida que você também não sabe o nome. Trânsito nesse percurso que você vê a paisagem passando borrada e rápida do lado de fora quase todos os dias.

Mas hoje não.

Hoje resolveram fazer uma blitz.

Você tenta ler o Guts do Chuck Palahniuk e desiste, enojado.

Escreve no bloco de notas do celular:

"O príncipe que pelo segundo dia seguido esqueceu o livro no armário do escritório. O príncipe entediado do ônibus plantado no trânsito. Euzinho. Pelo meus cálculos demorei, hoje cedo, 5 meses para chegar ao trabalho. Agora, voltando, já tem 3 meses e a previsão é de mais 1 mês no ônibus. Segundo a mais elementar matemática: 5+4=9. 9 meses. Segundo o maior referencial análogo a essa medida de tempo, algo está para nascer. Parirei. Mas, o quê? O que essa forçosa inseminação de pus cancerígeno via-crucis pode desenvolver como feto?"

20h50m

Você abre a mochila no banheiro da academia e tira a roupa. A roupinha social engomada.

Você põe a roupa que estava socada na mochila: sua bermuda com um rasgo no cu e sua camisetinha do Black Flag com as mangas e gola cortadas. A camiseta parece ter sido tirada de dentro de um uma garrafa de pinga. Chega na arena parecendo um mendigo. O panorama é composto por camisetas laranjas, camisetas pólo da marca do jacarezinho, camisetas de time de futebol rescendendo a chorume e calças jeans.

Você se sente um mendigo.

22h03m

Depois de um treino às pressas e nas coxas, você sai pingando de suor na noite mais ou menos fria, com o estômago colado às costas de fome. Se sente parcialmente melhor. Quer chegar em casa e arrumar treta. Quer deixar as fissuras de seu chinelo na cara do comilão. Mas já não tem mais nem saco pra pensar em fazer qualquer coisa: discutir, blefar, bater. A falta de ambição em resolver um problema é dolorosa, e cria miríades de situações similares vivídas sofridamente e ignoradas em sua dissolução benéfica. Dar de ombros e mandar tomar no cu - orgulho e razão - é mais fácil e economiza tempo.

Você pensa em economizar tempo e lembra das quase cinco horas do dia que foram gastas dentro de caixas metálicas cuja função deveria ser se mover.

Solta um risinho de escárnio e anota mentalmente o dia que quer fazer a mudança.

22h10m

Você encontra seu amigo maconheiro no portão de casa. Ele está fumando. Ele pergunta como você tá e se quer dar um tapa. Você, ciente de que entrar em casa é meter o carimbo de protocolo na grande porcaria de dia que se passou, aceita. Dá uma puxada bem dada e parece que isso era tudo que você esperava.

Seu amigo diz: passei o dia inteiro fumando.

22h13

Você entra em casa e cumprimenta os bichinhos. Dá oi, abraça, pergunta como foi o dia. Abraça a cachorra efusiva e beija a gata mais mal-humorada. Tenta sentir chutes na barriga da sua gata prenha. Fora do domo de amor que as criaturias criam: televisão alta com novela. Black metal alto. Gente da rua falando alto.

Às vezes você acha que a única coisa que falta pra dar um tiro no meio da testa de meia dúzia é só a arma.

Na maioria das vezes você tem certeza.

22h15m

Segundo a sua dieta, você deveria comer arroz integral com brócolis, peito de frango no jantar.

Ou pão pita com atum.

Noz com mel.

Segundo a sua paciência, você deve comer um pão amanhecido com manteiga na chapa e beber um copo de chocolate ou suco.

Pão: carboidrato. Manteiga e chocolate: gordura. Você se lembra do suor escorrendo corpo abaixo e gotejando na esteira e dá de ombros.

Gordo, você.

Mas aí exageraram na naftalina e a frigideira onde seu precioso jantar é posto, amassado e torrado e ele, seu jantar, fica com o gosto dela, da naftalina. Aquela coisa ruim e intragável. E o seu achocolatado não é aquele que você gosta, porque daquele que você gosta só tem o pote dentro do armário com o interior que não enche nem meia colher de chá; só sobra aquele achocolatado que deixa uma crosta de açúcar no fundo do copo e dá azia. Esse é seu jantar.

Você é o que você come.

00h16m

As horas, as estúpidas horas morosas e pachorrentas desse dia, resolveram passar voando enquanto você redigia um texto cheio de anáfora sobre seu dia de merda que ninguém pediu pra ser escrito.

Você, esse caco com menos de seis horas para dormir, com dezoito a serem enfrentadas com a coragem beócia de um eunuco teso.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 07/08/2013
Reeditado em 07/08/2013
Código do texto: T4422958
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